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Jorge Luiz de Brito Junior. Carf e o split de operações 1 de julho de 2025

Uma recente decisão do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) jogou luz sobre um tema que, com frequência, gera insegurança entre empresas que buscam organizar suas operações de forma eficiente do ponto de vista tributário: a fronteira entre o planejamento lícito e a fraude aduaneira.

O caso analisado envolvia uma conhecida estrutura empresarial composta por duas pessoas jurídicas: uma industrial, responsável pelas importações e produção dos bens, e outra comercial, encarregada da revenda no mercado interno. Essa estratégia é recorrente em setores sujeitos ao regime monofásico de PIS e Cofins, em que a tributação se concentra no elo inicial da cadeia, desonerando os seguintes. O modelo, ao concentrar lucros na empresa comercial, tributada à alíquota zero, acaba por reduzir a carga fiscal global da operação.

Para a Receita Federal, no entanto, esse arranjo, aliado a outros indícios, configuraria interposição fraudulenta de pessoas, com ocultação do real importador — hipótese que, no âmbito aduaneiro, tem sérias consequências: autuação com base no valor aduaneiro integral da mercadoria, aplicação de multa de 100% e desconsideração da operação declarada.

Decisão do Carf

O Carf, por sua 3ª Seção, especializada em matéria aduaneira, afastou a tese da Receita. A decisão deixou claro que a economia fiscal alcançada por meio de planejamento tributário não pode ser, por si só, tomada como prova de simulação ou fraude para fins aduaneiros.

Segundo o entendimento consolidado do Carf, a caracterização da interposição fraudulenta exige a presença de três elementos: a existência de um negócio formalmente declarado (a importação em nome de determinada empresa), a presença de outro negócio oculto (o real importador agindo por trás da operação) e o conluio entre as partes envolvidas.

Para sustentar essa tese, o Fisco usualmente busca evidências como a incompatibilidade entre a estrutura física e a operação de importação, a ausência de capacidade financeira da empresa importadora, a falta de histórico em operações semelhantes, ou mesmo o uso de recintos alfandegários incomuns para o setor ou para a empresa. Também costumam ser considerados indícios relevantes aqueles ligados à origem dos recursos utilizados na operação, à forma de pagamento da importação e aos registros contábeis.

Margem de lucro

No caso julgado, contudo, a principal evidência levantada pela fiscalização foi a baixa margem de lucro da empresa importadora nas vendas para a empresa comercial. A Receita presumiu que margens reduzidas indicariam que a empresa comercial seria, de fato, a real compradora da mercadoria no exterior.

O Carf não acolheu essa linha de raciocínio. A decisão destacou que margens reduzidas de lucro não bastam para sustentar uma acusação de ocultação do real importador. A margem, por si só, é uma variável sujeita a inúmeros fatores legítimos — entre eles, decisões de precificação, estratégias de mercado e, no caso, os efeitos próprios do regime monofásico de tributação.

Outro ponto importante da decisão foi o reconhecimento da validade do contrato de rateio de despesas entre as duas empresas, incluindo o compartilhamento de pessoal. O colegiado avaliou que a existência desse tipo de contrato, se devidamente formalizado e executado com critérios objetivos, não configura indício de confusão patrimonial ou operacional entre as empresas — e, portanto, não serve como suporte para a acusação de interposição.

O cerne da decisão, no entanto, está em uma afirmação que ressoa com força no ambiente empresarial: o aspecto tributário, como a geração de economia fiscal ou a ruptura da cadeia de IPI, pode até ser uma consequência da interposição fraudulenta, mas jamais pode ser a sua causa ou justificativa exclusiva.

Esse ponto é decisivo para afastar interpretação de que a mera elisão fiscal seria o suficiente para caracterizar a interposição fraudulenta para fins aduaneiros. Em outras palavras, a fiscalização deve ir além disso para impor a pena de perdimento, demonstrando, principalmente, que o suposto importador oculto arcou financeiramente com a importação.

Segurança jurídica

Em um ambiente de crescente escrutínio sobre planejamentos tributários e reorganizações empresariais, a decisão do Carf reafirma que estruturas jurídicas organizadas para viabilizar modelos mais eficientes do ponto de vista fiscal não podem ser desqualificadas apenas por seu resultado econômico, ao menos no que tange aos controles aduaneiros.

Ao mesmo tempo, a decisão mostra que a Receita Federal continua atenta e exigente em relação à documentação e à coerência dos fluxos operacionais e financeiros. A linha divisória entre está na solidez da prova de autonomia financeira do importador, bem como da inexistência de outros fatores que induzam à existência de um importador oculto, e não na economia fiscal alcançada pelo planejamento tributário.

Empresas que adotam estruturas envolvendo múltiplas pessoas jurídicas, sobretudo em operações internacionais, devem estar preparadas para demonstrar a lógica negocial da divisão de funções, a efetividade dos contratos e a capacidade operacional e financeira de cada parte envolvida.

Mais do que nunca, transparência, governança e documentação consistente são os pilares que sustentam a legalidade do planejamento tributário e a segurança jurídica das operações.

Artigo publicado originalmente no Conjur.