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O avanço das fontes renováveis e a rápida expansão da geração distribuída transformaram a matriz elétrica brasileira em uma das mais limpas do mundo. No entanto, o crescimento acelerado também revelou gargalos estruturais e descompassos regulatórios. Um dos fenômenos mais discutidos entre agentes do setor é o curtailment — termo usado para designar cortes na geração de energia em razão de limitações na rede de transmissão ou de restrições operacionais do despacho centralizado.
Esse mecanismo, que visa preservar o equilíbrio do sistema elétrico, tem se tornado cada vez mais recorrente em estados que concentram usinas solares e eólicas. Embora o Brasil conte com um sistema interligado importante, as restrições de escoamento começam a afetar a competitividade de novos projetos e podem, a longo prazo, impactar consumidores e investidores.
“A ausência de uma regulação clara sobre quem deve arcar com os prejuízos decorrentes do curtailment cria um ambiente de insegurança que afasta investidores e aumenta o custo dos novos contratos”, explica o advogado Felipe Kfuri, sócio de energia elétrica e infraestrutura do L.O. Baptista Advogados.
O curtailment ocorre, por exemplo, quando a produção de energia ultrapassa a capacidade da rede de transmissão, levando o Operador Nacional do Sistema (ONS) a reduzir ou interromper o despacho de usinas. A prática é comum em países com forte presença de fontes intermitentes, como Alemanha e Estados Unidos, mas ganha contornos específicos no contexto brasileiro devido à concentração geográfica dos parques eólicos e solares.
Riscos para consumidores e investidores
Os impactos se desdobram em duas frentes. No curto prazo, a oferta excedente em horários de baixa demanda pode gerar instabilidade e até apagões localizados. No longo prazo, o desestímulo a novos investimentos em geração renovável se torna um risco concreto, especialmente quando projetos não conseguem garantir o escoamento integral da energia produzida.
O resultado financeiro também preocupa. Com o aumento das restrições, os contratos de longo prazo (PPAs) podem sofrer reajustes, e o custo da energia tende a subir. Isso ocorre porque o valor antes diluído em vários empreendimentos passa a se concentrar em menos consumidores.
“O curtailment afeta diretamente a previsibilidade financeira dos projetos e compromete a eficácia dos PPAs como instrumentos de estabilidade contratual no setor elétrico”, diz Karina Santos, advogada da área de Sustentabilidade Corporativa do Gaia Silva Gaede Advogados.
Nesse cenário, a judicialização começa a despontar como um novo desafio. Especialistas alertam que disputas sobre curtailment podem aumentar a complexidade regulatória e atrasar a busca por soluções equilibradas no setor.
Para o advogado Diogo Nebias, sócio do Panucci, Severo e Nebias Advogados e especialista em infraestrutura, a falta de planejamento na expansão da rede de transmissão e o desequilíbrio no incentivo às fontes renováveis criaram um cenário de vulnerabilidade que precisa ser corrigido com medidas regulatórias.
“Atrapalhar as iniciativas, não diria, pois é necessário ter solução não judicializada via mudanças regulatórias. Mas adiciona complexidade, uma vez que os processos iniciados não devem ser encerrados rapidamente”, afirma Nebias.
Ele destaca que a restrição de fornecimento de energia de projetos em operação pode aumentar o custo dos PPAs e reduzir o interesse de novos investidores.
“Restringir o fornecimento de projetos atuais pode, sim, vir a aumentar o custo de PPAs, pois o custo dos projetos que não puderem fornecer energia no volume inicialmente projetado ficará concentrado em menos consumidores. Ainda, se o curtailment inibir o investimento em projetos solares e eólicos, pode haver redução gradual da oferta ao longo do tempo, elevando o custo da energia e dos PPAs de renováveis.”
Nebias observa ainda que o país precisa rever gradualmente os subsídios às fontes renováveis, hoje mais competitivas do que há uma década, e adotar um modelo de incentivo faseado que concilie expansão, transmissão e proteção ao consumidor.
Segundo Felipe Kfuri, um dos pontos críticos é justamente “a falta de coordenação entre a expansão da geração renovável e a infraestrutura de escoamento da energia”. Ele acrescenta que “sem um plano integrado de longo prazo, o curtailment tende a se agravar e gerar passivos contratuais cada vez mais complexos”.
Caminhos para reduzir o problema
Entre as alternativas estudadas por especialistas e reguladores estão novos mecanismos de incentivo ao consumo fora dos horários de pico, modernização do despacho de energia e investimentos em linhas de transmissão estrategicamente localizadas.
Ainda assim, o desafio é complexo. De acordo com Nebias, poucas empresas têm capacidade técnica e financeira para executar projetos de transmissão de longo alcance, e as novas linhas devem ser planejadas de forma a não competir com concessões já existentes — muitas delas altamente endividadas.
“A criação de um marco regulatório para os sistemas de armazenamento de energia e a realização de leilões de capacidade são medidas urgentes para mitigar os impactos do curtailment por razão energética”, avalia Karina Santos. Ela reforça que “o armazenamento e as chamadas ‘baterias verdes’ podem funcionar como elementos-chave para equilibrar oferta e demanda e dar mais previsibilidade ao sistema”.
A discussão sobre curtailment, embora técnica, revela uma questão central da transição energética: como crescer de forma sustentável sem comprometer a estabilidade do sistema e o equilíbrio econômico do setor elétrico.
Fonte: LexLegal.







