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Leonardo Gusmão e Pedro Sardinha A compensação como defesa em embargos à execução fiscal 16 de março de 2021

Os contribuintes têm visto cerceado o seu direito básico de defesa pelo fato de a compensação tributária pretérita indeferida administrativamente não estar sendo admitida como argumento de direito.

Em 2020, no campo da matéria tributária, os contribuintes se viram derrotados em demandas de extrema importância no âmbito do Supremo Tribunal Federal

O ano de 2020, especialmente afetado pela pandemia da covid-19, trouxe consigo inúmeros desafios e prejuízos de toda natureza para a sociedade em geral.  No campo da matéria tributária, houve inúmeros julgamentos pelas Cortes Superiores e os contribuintes se viram derrotados em demandas de extrema importância no âmbito do STF, tais como os leading cases a respeito da contribuição adicional ao FGTS por demissões sem justa causa, sobre a incidência do IPI na revenda de produtos importados, e acerca da impossibilidade de exigência da contribuição ao SEBRAE após a emenda constitucional 33/01.

Não bastassem os reveses quanto ao mérito de importantes teses tributárias, os contribuintes também se viram acuados no campo do processo tributário, isto é, em questões envolvendo o instrumento jurídico cabível a tutelar os seus interesses perante o Poder Judiciário.

E, neste contexto, já adentrando ao tema da presente discussão, os contribuintes têm visto cerceado o seu direito básico de defesa pelo fato de a compensação tributária pretérita indeferida administrativamente não estar sendo admitida como argumento de direito a demonstrar a extinção do crédito tributário em sede de embargos à execução fiscal.

A questão, que já estava pacificada em favor dos contribuintes desde o julgamento do Recurso Especial 1.008.343/SP, sob a sistemática dos recursos repetitivos e de forma unânime, ganhou novos contornos a partir de uma tacanha interpretação deste próprio julgado repetitivo, a qual vem sustentando que a compensação pretérita somente poderia ser arguida como matéria de defesa em sede de embargos à execução fiscal caso tivesse sido chancelada/reconhecida administrativamente ou, até, na via judicial (situação absolutamente rara), em momento anterior ao da oposição dos embargos à execução fiscal.

Contudo, tal interpretação cria requisito novo e distante daqueles que foram sedimentados pelo próprio STJ quando julgou o caso paradigma repetitivo, ou seja, o Recurso Especial 1.008.343/SP. Senão vejamos.

O artigo 16, § 3º, da Lei de Execuções Fiscais, dispõe que quanto aos embargos, “não será admitida reconvenção, nem compensação…”

O primeiro ponto a se ressaltar é que, quando publicada, em 1980, a lei 6.830 (Lei das Execuções Fiscais), a possibilidade de compensação de tributos em matéria tributária, como forma de extinção do crédito tributário, estava ainda bem longínqua de existir.  Tal modalidade de compensação, de créditos vencidos contra débitos vincendos de tributos de mesma espécie e destinação, veio a surgir, apenas, com a lei 8.383/91.

Logo, analisando a questão à luz da mens legis, isto é, da finalidade da norma, resta claro que não podia o legislador ter tido o intuito de criar uma vedação a ser arguida em sede de embargos à execução fiscal a respeito de instituto – compensação tributária – que sequer existia na prática ou legalmente (havia apenas uma previsão genérica a respeito nos artigos 156, II, e 170, do CTN).  Ele não detinha bola de cristal com tal objetivo e a norma, por certo, pretendia se referir a uma possível compensação futura, que o contribuinte pudesse eventualmente propor no curso dos embargos.

Assim, se percebe que a vedação constante no artigo 16, § 3º, da LEF, não se dirigia a uma compensação tributária que já tivesse sido realizada com objetivo de quitar uma obrigação e extinguir o crédito tributário. O que visou dita norma, verdadeiramente, foi evitar que se tentasse realizar uma compensação no seio e quando apresentados os embargos (defesa); a citada norma da LEF, acertadamente, evita que se promova um acerto/encontro de contas entre o débito fiscal executado e eventual outro crédito contra a Fazenda Pública que o contribuinte detenha naquele momento.

Outro ponto importante da legislação a ser apreciado é o seu conteúdo semântico, por dois aspectos.

Inicialmente, pelo fato de o legislador utilizar-se da conjunção coordenativa aditiva “nem”. Ou seja, ao adotar a expressão “não será admitida reconvenção nem compensação”, o legislador fez uma espécie de equiparação entre os dois institutos, vedando o respectivo emprego pelo fato de ambos representarem uma oposição, à Fazenda Pública, de alguma situação fático-jurídica que fuja dos limites da lide (seja pela apresentação de uma ação do Executado contra o Exequente via reconvenção, seja pela apresentação de um crédito em favor do Executado contra o Exequente, via compensação).

E, também, pela norma estar escrita utilizando-se do tempo verbal no futuro, deixando claro que “não será admitida” dita ação processual, o que leva à conclusão de que o ato da reconvenção ou da compensação que pretende ser evitado dar-se-ia de maneira concomitante ou posterior à oposição dos embargos à execução fiscal.

Atento a todos estes pontos, o Superior Tribunal de Justiça, interpretando a questão em sede de recurso repetitivo, foi bastante claro quanto aos elementos essenciais da compensação pretérita para que esta seja aceita como matéria de defesa em embargos à execução fiscal, quais sejam:” (I) a existência de crédito tributário, como produto do ato administrativo do lançamento ou do ato-norma do contribuinte que constitui o crédito tributário; (II) a existência de débito do fisco, como resultado: (a) de ato administrativo de invalidação do lançamento tributário, (b) de decisão administrativa, (c) de decisão judicial, ou (d) de ato do próprio administrado, quando autorizado em lei, cabendo à Administração Tributária a fiscalização e ulterior homologação do débito do fisco apurado pelo contribuinte; e (III) a existência de lei específica, editada pelo ente competente.”

Note-se, como demonstrado acima, que o STJ, em decisão repetitiva, entendeu que a compensação pretérita – já efetuada – é passível de ser arguida como fundamento de defesa em Embargos à Execução Fiscal, desde que (I) exista crédito tributário exigível decorrente do lançamento, ou seja, tributo a ser pago; (II) exista débito do fisco, isto é, um crédito em favor do Executado, que pode decorrer de quatro situações específicas; (III) haja lei autorizativa da compensação.

Veja-se que o chamado débito do fisco, em outras palavras, nada mais é do que o crédito deste em favor do Executado, pode decorrer de quatro situações distintas, quais sejam: um ato administrativo que invalide o lançamento tributário que já tenha sido pago pelo contribuinte, gerando um crédito em seu favor; uma decisão administrativa ou judicial que reconheça a existência de um indébito fiscal em favor do contribuinte; e, por fim, a situação mais comum, que é um ato do próprio administrado quando autorizado por lei, por exemplo, um recolhimento de Cofins a maior que a contribuição devida ao final do período de apuração (em regra, mensal), gerando consequente crédito passível de compensação, sendo cabível a posterior fiscalização pela Administração Pública.

Portanto, são somente os três requisitos mais acima listados, acrescidos da necessária previsão legal, não havendo obrigatoriedade de que a compensação pretérita tenha sido homologada administrativa ou judicialmente.

Em trecho do voto do exmo. ministro Luiz Fux, relator do julgado repetitivo, resta consignado que “a compensação efetuada pelo contribuinte, antes do ajuizamento do feito executivo, pode figurar como fundamento de defesa dos embargos à execução fiscal…”, “máxime quando, à época da compensação, restaram atendidos os requisitos da existência de crédito tributário compensável, da configuração do indébito tributário, e da existência de lei específica autorizativa da citada modalidade extintiva do crédito tributário (in casu, a lei 8.383/91).”

Logo, o comando derivado do julgamento do Recurso Especial 1.008.343/SP não exige qualquer chancela administrativa e/ou homologação sobre o dito indébito tributário (muito menos judicial), mas, tão somente, que ele esteja configurado minimamente. Ou seja, basta a apresentação de um crédito (indébito tributário) líquido e certo para que a arguição de compensação pretérita regularmente realizada, indeferida por algum motivo na esfera administrativa, possa ser válida como meio amplo de defesa em sede de Embargos à Execução Fiscal.

Novamente frise-se que o artigo 16, § 3º, da LEF, busca evitar a alegação da existência de um eventual crédito ainda não utilizado/aproveitado em favor do contribuinte, passível de utilização/compensação concomitante ou posterior à oposição dos embargos. Mas nunca impedir que o contribuinte demonstre, em seus embargos, devidamente, com base em fatos, provas e principalmente perícia, que o débito fiscal é indevido, pois já foi liquidado via compensação pretérita regular, com base em crédito legítimo, a qual, indevidamente ou seja lá por qual razão, não foi chancelada pela Receita Federal do Brasil, que tem o prazo de 5 anos para a respectiva homologação (art. 74, § 5º, da lei 9.430/96).

Evita-se o abuso pelo contribuinte que eventualmente seja credor da Fazenda Nacional, mas não se pode ceifar seu direito de defesa, mormente quando a correção e regularidade da compensação pretérita efetuada seja seu único argumento a desconstituir o indevido débito fiscal.

O entendimento ora defendido encontra eco em outra norma, já que, segundo o artigo 74, § 3º, I, da lei 9.430/96, não é possível compensar débito já inscrito em dívida ativa. Ou seja, não é possível tentar se extinguir um débito inscrito em dívida ativa através de compensação vindoura.

Contudo, o TRF da 2a região, nos autos do processo 2014.51.01.102434-0, por seu órgão plenário, em sessão realizada no dia 13/8/20, acabou entendendo que, em se tratando de compensação, mesmo pretérita, caberia ao contribuinte obrigatoriamente se antecipar e ajuizar uma ação declaratória do crédito/compensação realizada ou uma anulatória de débito fiscal, não sendo cabível tal argumento via embargos à execução fiscal.

Isso porque, segundo o MM. relator desembargador do feito no TRF, “a natureza processual dos embargos do devedor na execução fiscal tem natureza desconstitutiva da CDA, e não declaratória e constitutiva de um direito que não é objeto da discussão na execução fiscal. Daí porque não há espaço para se declarar outro direito, qual seja, o alegado direito ao crédito que o contribuinte diz possuir, e a utilização desse crédito, caso venha a ser reconhecido e declarado como líquido e certo, requisitos de qualquer compensação.

Todavia, tal entendimento não pode prevalecer, na medida em que, apesar de o objetivo dos embargos ser desconstituir o título executivo, todas as hipóteses de extinção do crédito tributário, onde se encontra a espécie da compensação tributária, devem ser consideradas para embasar a defesa a ser apresentada pelo contribuinte. Ou seja, não declarar-se-á outro direito que o contribuinte alega possuir, o que se fará é reconhecer a extinção do crédito tributário por situação pretérita já implementada, isto é, a compensação realizada nos termos da legislação aplicável, lembrando que a compensação declarada à RFB extingue o crédito tributário sob condição de ulterior homologação (para a qual as autoridades dispõem de um prazo de cinco anos) e que os pedidos de compensação pendentes de apreciação são considerados como compensação declarada para todos os efeitos legais (§§ 2º e 4º, da lei 9.430/96).

Tal posicionamento do TRF é extremamente perigoso por representar uma inadmissível guinada jurisprudencial ao arrepio da matéria pacificada em sede de repetitivo no âmbito do STJ e atingir em cheio os embargos à execução fiscal em curso onde a compensação pretérita foi arguida corretamente como defesa, podendo já haver até perícia que tenha reconhecido a legitimidade do crédito e a correção da compensação realizada anteriormente.

Também se revela equivocado tal entendimento por criar uma espécie de processo tributário típico, mandatório (pretensa ação declaratória da existência do crédito ou da validade da compensação) que inexiste no ordenamento, retirando do contribuinte seu direito de petição e ampla defesa, por cercear o instrumento clássico e legal para se proteger nas execuções fiscais, que são os embargos.

Ora, quando o débito decorrente de uma compensação não chancelada pela autoridade fiscal de forma definitiva é inscrito em dívida ativa, não pode surgir ao contribuinte uma obrigação/dever de ajuizamento de ação anulatória de débito fiscal ou, quiçá, de uma sui generis ação declaratória da existência de crédito ou de correção da compensação realizada. Seria impor ao contribuinte ônus excessivo em prejuízo à economia processual, lembrando que a CDA é título executivo extrajudicial que comporta presunção relativa de liquidez e certeza.

Pensar desta maneira retiraria o múnus da Fazenda Pública, que é o de ajuizar a execução fiscal e cobrar o crédito tributário, inclusive respeitando o prazo prescricional para tanto. A obrigação é fazendária, não do contribuinte.

Não se pode exigir do contribuinte que ele próprio instaure o contencioso judicial através da propositura de uma ação anulatória ou declaratória quando é da Fazenda Pública o dever de perseguir o crédito tributário e interromper o prazo prescricional para a cobrança.

Não deve o contribuinte ser compelido a, ele próprio, interromper o prazo prescricional que milita em seu favor; isto compete ao Ente Público, através do ajuizamento da competente execução fiscal e da permissão ao contribuinte que possa se defender na forma mais completa possível, isto é, in casu, sustentando a correção e a legitimidade do crédito utilizado e da compensação pretérita realizada adequadamente.

Ainda, a interpretação de que a alegação de compensação pretérita em embargos à execução restringe-se àquela já reconhecida administrativa ou judicialmente antes do ajuizamento da própria execução fiscal é quase surrealista, pois se a compensação já foi reconhecida administrativa ou até judicialmente, o débito fiscal que decorre de tal indeferimento já foi extinto e não haveria execução fiscal (se houvesse, seria extinta de ofício), tampouco necessidade de embargos a serem opostos.

São argumentos conflitantes, que não podem conviver de forma harmônica no mesmo mundo jurídico, eis que se anulam.

Por todas estas razões é que só pode haver uma única e uniforme interpretação do comando decorrente do julgamento, pelo Egrégio STJ, do Recurso Especial 1.008.343/SP, no sentido de se admitir a compensação pretérita realizada como matéria de defesa em embargos à execução fiscal, independente de homologação administrativa ou chancela judicial a respeito, devendo o contribuinte demonstrar, inclusive por perícia, se necessário, que dita compensação extinguiu o crédito tributário no passado e que o débito objeto de embargos decorreu de indevida rejeição da compensação pela autoridade administrativa, ou de sua inércia.

 

*Artigo originalmente postado no Migalhas.