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Enio Zaha e Jorge Luiz de Brito Junior O ilegal e inconstitucional Parecer Cosit 10/2021 6 de setembro de 2021

Nas últimas semanas, os Contribuintes foram surpreendidos por mais um capítulo da aparentemente interminável novela do “julgamento do século”. Tomou-se conhecimento de parecer editado pela Coordenação-Geral de Tributação (COSIT) da RFB (no. 10/2021), cuja conclusão, em resumo, é de que, na apuração dos créditos de PIS e da COFINS, o valor do ICMS também deve ser excluído.

Na prática, a referida orientação tem o potencial de reduzir a zero o impacto da decisão do STF no chamado “julgamento do século” – um litígio que se propagou por décadas na Suprema Corte brasileira. Esta nova tentativa da RFB mostra a dificuldade de se pacificar conflitos no Brasil, o que – sem sombra de dúvidas – penaliza o planejamento estratégico das empresas e, em última análise, a economia.

O referido parecer, a bem da verdade, foi emitido sob a forma de uma consulta efetuada pela RFB à Procuradoria da Fazenda Nacional a respeito dos efeitos do quanto decidido pelo STF. Entretanto, é sabido que tem sido juntado em alguns processos judiciais, sendo utilizado para fundamentar decisões que indeferem levantamento de depósitos ou restringem o direito dos Contribuintes à recuperação do indébito reconhecido em ações judiciais.

Apesar do ativismo da RFB, os Juízes não podem se deixar levar pelo apelo retórico de seus argumentos. Apenas uma análise muito superficial justificaria a conclusão salomônica de que, ao se excluir o ICMS da base para as saídas, se estaria, automaticamente, concluindo pela exclusão do mesmo Imposto nas aquisições. Porém, esta conclusão é altamente enganosa, por violar regras claramente postas pela legislação.

De fato, esta nova interpretação (i) não possui nenhum fundamento jurídico (ii) contraria pareceres emitidos em situações anteriores pela própria Procuradoria Geral da Fazenda Nacional e (iii) representa uma tentativa de levantar uma tese completamente nova, não analisada pelo STF, e totalmente à margem do caminho normal (isto é, o Devido Processo Legal perante o Judiciário, com todas as suas regras, premissas e garantias – inclusive no que se refere aos prazos prescricionais e decadenciais).

A nova interpretação da RFB – e o “nova” aqui não é mera retórica: a RFB jamais havia interpretado desta forma antes do decidido pelo STF – verdadeiramente contraria o texto legal. Isso porque, ao tratar do direito ao crédito, a legislação do PIS e da COFINS prevê que este deverá ser calculado pela aplicação da alíquota sobre o valor dos bens adquiridos para revenda, ou bens/serviços adquiridos como insumos. Não há qualquer exclusão quanto ao valor dos impostos incidentes sobre tal exclusão. Portanto, o parecer COSIT, viola, diretamente, o texto legal. Parte-se de pressuposto de tributação por suposto princípio de justiça e razoabilidade, o que não existe no Direito Brasileiro.

Há ainda que se ter em mente que o PIS e a COFINS funcionam segundo uma regra de não-cumulatividade que é bastante peculiar, diferente de outros tributos (como o ICMS e o IPI). Enquanto o ICMS funciona segundo um critério de “imposto contra imposto” – ou seja, o imposto destacado na nota pode ser deduzido contra o débito nas operações posteriores – o PIS e a COFINS funcionam num critério de “base contra base”. Isso significa que, ao contrário do ICMS, no PIS e na COFINS pode haver crédito sem que sequer tenha havido tributação na operação anterior, ou o crédito pode ser calculado com alíquotas normais mesmo que as aquisições tenham sido tributadas com alíquotas menores, diferenciadas.

Portanto, a conclusão aparentemente lógica de excluir na entrada o Imposto que se exclui na saída, na verdade, esconde uma verdadeira ilegalidade. Resta saber qual seria a fonte de tal novidade, uma vez que o STF jamais enfrentou ou decidiu esta matéria e que não houve qualquer alteração legislativa que justificasse a mudança de critério jurídico.

Qual é a mágica que possibilita que possa o Fisco impor uma barreira àquilo que foi expressamente decidido pela mais alta corte do país, sem que se percorram as vias normais? A nobre tentativa de arrecadar dos fiscais da RFB poderia permitir que não se respeite os prazos de decadência para o lançamento? Poderia o Fisco “embarcar” na ação judicial do Contribuinte para aplicar interpretação que foge aos limites do pedido, e contraria os interesses dos próprios autores das ações já transitadas em julgado?

Vale ressaltar que, antes do julgamento do STF, a própria RFB possuía normativos claros pela inclusão do ICMS no cálculo dos créditos.

Em uma situação bastante semelhante, envolvendo a decisão do STF quanto à exclusão do ICMS da base do PIS/COFINS na importação, a RFB também realizou consulta à PGFN. Na época, a RFB questionou sobre a possibilidade de indeferir pedidos de restituição com base no argumento de que o contribuinte deveria, primeiro, estornar créditos das contribuições (naquela situação, o recolhimento a maior do PIS e da COFINS na importação se convertia em créditos para o contribuinte).

A resposta da Procuradoria, à época, foi negativa. Entendeu a PGFN, corretamente, que “embora do ponto de vista econômico e operacional a sugestão da RFB tenha algum sentido, referido entendimento não encontra respaldo do ponto de vista jurídico’.

A PGFN entendeu, à época, pelo óbvio: que os recolhimentos indevidos deveriam ser devolvidos ao Contribuinte conforme decidido nos processos judiciais, e que eventual cobrança de créditos escriturados a maior deveria ser feita pela RFB em lançamento próprio – leia-se: respeitados os procedimentos legais e prazo de decadência aplicável.

Neste ponto, a situação não difere substancialmente no que se refere ao decidido pelo STF no “Julgamento do Século”. Qualquer tentativa da RFB de aplicar, retroativamente, seu novo entendimento para barrar o direito à repetição de indébito já reconhecido pelo STF implica em abuso e inconstitucionalidade.

Caso os juízes venham a consentir esta tese, estarão permitindo um verdadeiro exercício de autotutela por parte do Fisco. Tributação com base em mero princípio de equidade ou justiça, quando realizada à margem da lei e ao arrepio de decisão judicial, é uma contradição em termos: a verdadeira justiça fiscal não convive com a ilegalidades.

A ver as cenas dos próximos capítulos.

 

*Artigo postado originalmente no Estadão.