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A personalização por IA transforma o relacionamento entre escritórios e clientes, mas levanta dilemas éticos e jurídicos sobre privacidade e consentimento.
A promessa da inteligência artificial (IA) em transformar a experiência do cliente é sedutora. Sistemas capazes de interpretar intenções, aprender preferências e oferecer recomendações sob medida já estão redefinindo a forma como empresas — inclusive escritórios de advocacia — interagem com o público. Em teoria, a personalização extrema representa eficiência, empatia digital e rapidez na solução de demandas. Na prática, porém, o cenário levanta dilemas éticos e jurídicos profundos: até onde a IA pode — ou deve — conhecer o cliente?
No setor jurídico, em que confidencialidade e confiança são princípios centrais, a discussão ganha contornos ainda mais complexos. Escritórios e departamentos jurídicos têm recorrido à automação para otimizar o atendimento, identificar padrões de comportamento e antecipar demandas de clientes empresariais. Mas quanto mais um sistema “aprende” sobre o usuário, mais próximo fica de um limite sensível: o da intimidade digital.
Personalização e vigilância: a linha tênue entre conveniência e invasão
A personalização é o uso de dados para criar proximidade. Ela faz o cliente se sentir ouvido, compreendido e atendido com precisão. No entanto, quando essa experiência se transforma em uma forma de vigilância — ainda que sob o pretexto de “melhorar o serviço” — a relação de confiança se fragiliza.
Soluções baseadas em machine learning e processamento de linguagem natural (PLN) permitem que algoritmos analisem o tom de voz em uma ligação, o tempo de resposta em um chat, as palavras utilizadas em e-mails e até o tipo de documento mais solicitado. O cruzamento dessas informações cria um retrato detalhado do cliente — um nível que, embora útil para personalizar atendimentos, também pode ser percebido como intrusivo.
A pergunta essencial, portanto, é: o cliente deu consentimento real e informado para esse tipo de leitura? Ele compreende o que está sendo coletado, armazenado e processado em cada interação?
LGPD e o papel da legalidade na proteção da intimidade digital
A Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD) estabelece que qualquer tratamento de dados deve ter base legal, finalidade legítima e consentimento explícito do titular. No caso de escritórios de advocacia, a norma impõe desafios adicionais, já que muitas interações envolvem informações sensíveis — como dados financeiros, estratégicos e pessoais de clientes.
A advogada Larissa Pigão, especialista em direito digital e mestranda pela Universidade Autônoma de Lisboa, explica que o desafio está na natureza dinâmica dos algoritmos.
“A LGPD parte do pressuposto de que o consentimento deve ser informado, livre e inequívoco, mas no ambiente de aprendizado contínuo das IAs esse consentimento ‘único’ tende a se tornar rapidamente obsoleto. A cada nova finalidade de tratamento, mudança na base de dados ou ampliação da capacidade analítica do modelo, é necessário reavaliar se o consentimento ainda reflete a vontade do titular.”
Para ela, os escritórios jurídicos devem adotar mecanismos de consentimento dinâmico e transparente. “As empresas precisam registrar de forma rastreável as versões dos avisos e dos tratamentos associados, manter relatórios contínuos de impacto e garantir cláusulas contratuais claras sobre segurança e descarte de dados.”
Juliana Joppert Lopes, sócia do Gaia Silva Gaede Advogados, reforça a necessidade de gestão ativa da privacidade. “As empresas e escritórios jurídicos devem adotar mecanismos de gestão do consentimento, com monitoramento constante das finalidades e revalidação periódica.”
Segundo Lopes, o consentimento deve ser compreendido como processo contínuo, e não como ato isolado. “Assim, ele deixa de ser um ato isolado e passa a integrar um processo de governança de dados e transparência, essencial para a conformidade com a LGPD no contexto de IA.”
A advogada Denise de Araujo Berzin Reupke, do L.O. Baptista, explica que a transparência de todas etapas do processo precisa ser revisitada periodicamente. “Em sistemas de IA que aprendem continuamente, um consentimento único tende a ser insuficiente. Políticas de privacidade dinâmicas, termos revisados e comunicações claras garantem que o cliente permaneça plenamente informado sobre o uso evolutivo de seus dados.”
A “bolha da conveniência”: quando o algoritmo decide por você
A personalização extrema, embora confortável, pode restringir a autonomia do cliente. Um sistema que antecipa constantemente as decisões e oferece apenas o que o usuário “provavelmente deseja” cria uma zona de conforto algorítmica, na qual as opções são filtradas antes mesmo de chegarem à consciência.
No contexto jurídico, isso pode significar que um cliente empresarial receba apenas alertas e recomendações moldadas por padrões anteriores, sem espaço para explorar novas estratégias, parceiros ou soluções. O mesmo vale para departamentos jurídicos internos que utilizam ferramentas de IA para selecionar fornecedores, cláusulas contratuais ou até mesmo pareceres.
O risco é a formação de “bolhas de decisão”, nas quais a IA reduz a diversidade de perspectivas — um paradoxo para um ambiente que deveria fomentar a análise crítica e a pluralidade de soluções.
Transparência como base da confiança
A calibragem ética da personalização depende de transparência. Escritórios e empresas que adotam IA em interações com clientes devem explicar de forma acessível:
- Quais dados estão sendo coletados;
- Como são utilizados;
- Com que finalidade;
- Por quanto tempo são armazenados;
- Se são compartilhados com terceiros.
Mais do que uma formalidade, essa prática reforça a legitimidade da relação digital. O cliente deve sentir que a tecnologia o serve, e não que o monitora.
A personalização ideal é aquela que torna o serviço mais eficiente sem ultrapassar o limite da intimidade. Segundo os especialistas ouvidos por LexLegal, a IA precisa conhecer o suficiente para ser relevante, mas não tanto a ponto de soar intrusiva. A regra de ouro está no equilíbrio.
Entre ética e técnica: o papel da advocacia
Para os escritórios de advocacia, a discussão sobre personalização por IA não é apenas tecnológica — é estratégica. A confidencialidade profissional, prevista no artigo 7º do Estatuto da OAB, deve orientar qualquer projeto que envolva coleta e tratamento de dados de clientes.
Além disso, a Resolução nº 305/2023 do Conselho Federal da OAB, que trata do uso ético de tecnologias emergentes, estabelece que a automação não pode comprometer o sigilo, a imparcialidade nem o dever de lealdade ao cliente. Ferramentas de IA generativa e análise preditiva devem ser supervisionadas por profissionais habilitados, capazes de avaliar riscos e corrigir vieses.
No plano prático, a advocacia precisa desenvolver protocolos internos de governança digital, combinando compliance, segurança da informação e revisão ética. Essa estrutura é essencial para garantir que a personalização por IA atenda ao interesse do cliente, e não à lógica da eficiência a qualquer custo.
Para o advogado Alan Campos Thomaz, sócio do Campos Thomaz Advogados, a autorregulação e a governança contínua são hoje as ferramentas mais eficazes para garantir inovação com responsabilidade. “Mesmo sem um marco regulatório específico no Brasil, o uso ético da IA no setor jurídico depende de avaliação prévia dos riscos de cada sistema e de uma governança que acompanhe e monitore a tecnologia ao longo do tempo. A autorregulação, com políticas internas e comitês de ética, é hoje o caminho mais sólido.”
A maturidade ética como diferencial competitivo
À medida que a IA se torna onipresente no setor jurídico, a capacidade de equilibrar inovação e responsabilidade passa a ser um diferencial de mercado. Escritórios e departamentos que conseguirem personalizar seus serviços com transparência e respeito à privacidade tendem a conquistar a confiança dos clientes — bem mais difícil de se recuperar quando perdida.
O desafio é garantir que o uso de dados e algoritmos não substitua a escuta humana, mas a complemente. A tecnologia pode agilizar o atendimento e reduzir erros, mas a empatia, o discernimento e o senso de justiça continuam sendo atributos essencialmente humanos.
De acordo com os advogados da área, o futuro das interações digitais será definido pela capacidade técnica da IA e pela maturidade ética com que se decide aplicá-la. Esse é o ponto central: a inteligência artificial deve ser ferramenta de aprimoramento, não instrumento de invasão.
Um debate que exige regulação contínua
O avanço da personalização algorítmica já pressiona reguladores. A União Europeia, por exemplo, aprovou em 2024 o AI Act, primeiro marco legal abrangente sobre inteligência artificial, que proíbe o uso de sistemas que violem direitos fundamentais ou manipulem comportamento de usuários. No Brasil, a discussão caminha no Projeto de Lei nº 2.338/2023, em análise no Legislativo, que busca estabelecer princípios de IA ética e transparente, em sintonia com a LGPD e com as diretrizes da ONU.
A regulamentação, contudo, será apenas o ponto de partida. O desafio real estará na implementação de práticas corporativas responsáveis, especialmente em setores que lidam com dados sensíveis — como o jurídico, o financeiro e o de saúde.
Fonte: LexLegal.







