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Conselho Administrativo de Recursos Fiscais tem se tornado um alvo recorrente do novo governo
Neste início do ano, sob os auspícios do novo governo – que se vê às voltas com o desafio fiscal –, um alvo tem se tornado recorrente, tanto nos discursos do novo ministro da Fazenda, nas falas da Receita Federal e de certos setores da imprensa: o Carf, órgão máximo de solução de controvérsias tributárias federais.
Composto, paritariamente, por representantes dos contribuintes e do fisco, os julgamentos do Carf que terminam empatados são definidos em favor do contribuinte, conforme regra em vigor desde 2020 (até então, o voto de desempate favorecia o fisco). O atual estoque de processos em trâmite no Carf já supera R$ 1 trilhão.
Recentemente, o governo editou uma MP para reverter a aludida regra de desempate. A Medida Provisória é objeto de uma ADIN, tendo o Conselho Federal da OAB – autor da ação – buscado uma solução conciliatória sobre o tema, que segue em pleno debate no Congresso. A nova MP, por sinal, torna mais restrito o acesso ao Carf, ficando as disputas em valor inferior a mil salários mínimos sujeitas à decisão pelas Delegacias de Julgamento – órgãos em que não há paridade.
Uma recente matéria na imprensa chegou a se utilizar de termos fortes como “festa” ou “paraíso fiscal criado pelo tribunal dos impostos” para se referir ao Carf. Neste acalorado ataque, críticas visam, sobretudo, à composição paritária e ao número de instâncias recursais (há três níveis atualmente), tendo o ministro da Fazenda chegado a afirmar que nenhum país da OCDE ou do G20 teria um sistema semelhante.
Com o acirramento do debate, inclusive já tratado pelo JOTA, é importante buscar um estudo comparativo sério com o que é praticado em outras jurisdições, a fim de se evitar mitos e exageros comuns no debate político.
Nessa linha, destaca-se o estudo conduzido pelo Núcleo de Tributação do Insper em 2021, o qual se debruçou sobre os sistemas adotados em sete países (Alemanha, Argentina, Espanha, Estados Unidos, França, Itália e Portugal), avaliando-os de acordo com dois critérios principais: a participação dos contribuintes no pré-contencioso e a composição dos órgãos de julgamento.
O estudo aponta que, com exceção da Espanha, todos os países possuem sistemas alternativos – leia-se, amigáveis – de soluções de conflitos entre fisco e contribuintes, além de outras características como maior foro de diálogo entre fisco e contribuintes quanto à elaboração, revisão e interpretação das regras tributárias. Apenas na Espanha tem-se composição exclusiva por representantes do fisco.
Em complemento ao estudo promovido pelo Insper, outros aspectos institucionais devem levar, no mínimo, a uma maior cautela na comparação entre Carf e sistemas adotados por outros países
Nos EUA, por exemplo, além de uma fase pré-litigiosa, em que há possibilidade de discutir o caso com o chefe da fiscalização, há possibilidade de recurso no âmbito da Receita Federal (IRS) ou à chamada Tax Court – em ambas as situações, o contribuinte não precisa recolher os tributos discutidos.
Há duas características muito importantes a serem observadas: A primeira é que o órgão de resolução de conflitos no âmbito da IRS possui a característica de independência. Há uma ênfase na imparcialidade, criando-se os chamados chinese walls – ou seja, restrições legais e institucionais à comunicação ex parte entre funcionários da Receita Federal e o setor de recursos. Estas restrições legais visam garantir a independência e imparcialidade do órgão, de modo que não se pode jamais imaginá-lo como uma mera extensão do fisco. Além disso, nesta fase, há fomento à solução amigável e não imposição de penalidades.
Por outro lado, a Tax Court, embora reconhecida como corte judicial desde 1991 por um julgamento da Suprema Corte dos EUA, possui, na verdade, uma espécie de natureza híbrida: apesar de suas decisões não poderem ser revistas pelo Legislativo ou Executivo, seus juízes – que possuem mandatos de 15 anos – podem ser removidos pelo chefe do Executivo. Tanto a Tax Court não é propriamente um tribunal judicial que o contribuinte pode, inclusive, optar por não recorrer a ela, mas sim levar seu caso a outras cortes judiciais. Ou seja, a Tax Court, guardadas as devidas proporções, é comparável ao Carf, e não a um órgão do Poder Judiciário.
Quanto à composição, nota-se que o órgão é formado tanto por ex-funcionários da Receita e ocupantes de outras posições no governo como também por advogados com carreira sólida em firmas de advocacia. Importante destacar, ainda, que há um percentual significativo de êxito dos contribuintes, sendo que 85% dos casos acabam resultando em acordo.
Semelhante cautela deve ser adotada ao se comparar o modelo brasileiro com o adotado no Reino Unido. Lá, de forma semelhante ao que acontece nos EUA, o contribuinte pode recorrer administrativamente no âmbito da receita federal (a HRMC) ou aos First-Tier Tribunals (FTT).
Apesar do uso da terminologia “tribunal”, os FTT não são propriamente órgãos do Judiciário. Embora sob a estrutura do Judiciário, são tribunais com jurisdição restrita, não podendo – via de regra – conhecer de argumentos de Direito Público, tal como ocorre com o Carf e os demais tribunais administrativos no Brasil.
Os juízes dos FTT são assalariados, podendo ser contratados em bases fixas, ou receber por sessão. Ou seja, não são juízes togados, afastando a comparação com o Judiciário brasileiro. Um relatório divulgado pelo The Institute for Fiscal Studies no ano de 2021 avaliou que a participação de juízes advogados com extensa prática na área fiscal deve ser fomentada nos FTT, devido às excelentes habilidades e conhecimento técnicos destes profissionais. Importante frisar que há quatro instâncias recursais nos FTT, contra as criticadas três instâncias existentes no Carf, em que – por sinal – apenas duas são automáticas (a possibilidade de recorrer à instância especial é, na verdade, bastante restrita pelo regimento).
Logo, nota-se que tanto o modelo norte-americano como o britânico colocam grande ênfase na imparcialidade das decisões, sem falar nos outros fatores já abordados pelos estudiosos, como a existência de meios alternativos de solução de controvérsia. Qualquer premissa de que se trata de meros órgãos validadores do trabalho dos auditores fiscais é ilusória, polui o debate e apenas distorce a compreensão do tema e a busca por um melhor sistema, que possa contemplar os anseios tanto do fisco como dos contribuintes.
*Artigo publicado originalmente no JOTA.