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Patricia Stepenoski & Vitor Henrique Malikoski. Cooperative compliance em tempos de reforma tributária 16 de maio de 2025

Nos últimos anos as questões tributárias têm passado por muitas discussões no cenário político brasileiro, especialmente em razão da recém e novel reforma tributária do consumo (Emenda Constitucional nº 132/23 e LC nº 214/25) e discussões sobre a reforma tributária da renda.

Todo o atual modelo tributário está sendo repensado e reformulado. É como se o contribuinte e fisco estivessem deixando de lado “aquela velha opinião formada sobre tudo”, como na canção de Raul Seixas.

Especialmente no período de transição da reforma, será preciso exercer a capacidade de adaptação, pois haverá tributos, fatos geradores e conceitos totalmente novos para ambos os sujeitos da relação tributária.

Mas será que só a mudança no direito tributário material será suficiente? O governo federal, há algum tempo, vem propondo um estreitamento nas relações com o contribuinte, um conceito definido internacionalmente como “cooperative compliance” ou, em bom português, “conformidade tributária”.

“Cooperative compliance” é uma abordagem de gestão de conformidade tributária que enfatiza a transparência, a cooperação transparente e a comunicação aberta e proativa entre as autoridades fiscais e os contribuintes. O objetivo é melhorar a regularidade fiscal e reduzir a incerteza tributária por meio de uma relação de trabalho colaborativa e proativa entre contribuintes e Fiscos, em vez de uma abordagem puramente punitiva ou adversarial que existe atualmente.

A “conformidade cooperativa” já é realidade em vários países que fazem parte da OCDE e não é à toa que o Brasil está buscando esse modelo, já que pretende fazer parte dessa organização mundial.

No âmbito federal, a Receita Federal (RFB) tem buscado mudar sua postura ao promover programas testes sob a ótica do “cooperative compliance”, em especial com os programas Confia, Sintonia e Operador Econômico Autorizado (OEA).

Tais programas já estão sendo aplicados pela Receita Federal (Confia e Sintonia ainda em testes) e há um projeto de lei para instituição formal destes programas – PL nº 15/24, em trâmite na Câmara dos Deputados.

O programa Sintonia, recentemente instituído na forma de “Programa Piloto” pela Portaria/RFB nº 511/25, visa estimular cumprimento de obrigações tributárias e aduaneiras, por meio de concessão de benefícios aos contribuintes classificados com base nos critérios de (1) regularidade cadastral; (2) cumprimento tempestivo de obrigações acessórias, e; (3) exatidão de informações prestadas nas declarações e escriturações.

Dentre os benefícios concedidos aos contribuintes neste programa, destaca-se a análise prioritária de pedidos restituição, ressarcimento ou reembolso de tributos, no atendimento junto à RFB e na participação deliberativa em seminários, capacitações e fóruns consultivos promovidos pela RFB.

Já o programa Confia (Portaria/RFB nº 417/24) consolida uma série de medidas de aproximação do contribuinte que aderir, como por exemplo, o oferecimento de um canal de comunicação diferenciado na Receita Federal, para resolver questões de certidão de regularidade fiscal e compensações tributárias. Também prevê uma espécie de auditoria interna nas empresas, possibilitando a revisão de planejamentos tributários do contribuinte pela Receita Federal.

Embora pareça bem-intencionado, o programa Confia, da forma como atualmente previsto na portaria, ainda mantém uma relação desequilibrada entre fisco e contribuinte.

De um lado, tem-se a obrigação da empresa de compartilhar todas as informações sobre suas operações e permitir que a Receita Federal revise suas rotinas fiscais, declarações e recolhimentos, inclusive planejamentos tributários, tudo em tempo real, expondo o contribuinte à interpretação do fisco e a eventuais autuações.

Do outro lado, a Receita Federal deve apenas cumprir aquilo que já é esperado e previsto na legislação pátria: Um canal efetivo de atendimento ao contribuinte.

O PL nº 15/24, que visa a instituição definitiva dos programas, prevê ainda a exclusão da multa no caso de o contribuinte revelar um planejamento tributário que se entenda ilícito – algo muito próximo do instituto da denúncia espontânea, já existente no sistema tributário.

O referido projeto de lei encontra-se estagnado na Câmara dos Deputados, de modo que eventual melhoria e regulamentação do Confia não parece estar próxima de ocorrer. É preciso que os parlamentares percebam e corrijam essa discrepância entre as vantagens e obrigações que os contribuintes podem obter com tais programas.

Operador Econômico Autorizado

Ao contrário do Confia, o programa OEA — IN/RFB nº 2.154/2023 — oferece a simplificação dos procedimentos de importação e exportação sem expor o contribuinte à possíveis interpretações do fisco sobre suas operações.

Trata-se de uma certificação concedida pela Receita Federal a empresas que demonstram elevado grau de conformidade com as obrigações aduaneiras e tributárias, além de práticas eficazes de segurança na cadeia logística internacional.

Entre as principais vantagens para os contribuintes certificados estão a redução de custos operacionais e prazos nas operações de importação e exportação, prioridade no despacho aduaneiro, menor incidência de inspeções, maior previsibilidade e segurança nas transações, além de tratamento diferenciado perante a Receita Federal.

Ou seja, é um programa que contribui efetivamente para as operações do contribuinte, trazendo melhorias da sua imagem no mercado, aumentando sua competitividade e fortalecendo sua posição no comércio internacional, além de trazer diversas benesses ao próprio Fisco federal.

Autorregularização e transações

Além dos programas mencionados, também merece destaque a Autorregularização Incentivada, que permite o pagamento de tributos com anistia de juros e multas e o Litígio Zero, que concede descontos e autoriza o uso de prejuízo fiscal para quitar débitos em discussão administrativa. Ambos os programas foram instituídos pela Receita Federal.

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional também adotou medidas cooperativas, como as transações tributárias, pareceres que dispensam contestar teses pacificadas nos tribunais e os Negócios Jurídicos Processuais, que permitem ajustes como calendarização de atos e substituição de bens penhorados.

Esses instrumentos são exemplos muito efetivos do estreitamento da relação entre os contribuintes e o Fisco Federal, bem como da redução da litigiosidade da tributação de maneira mais eficiente e cooperativa.

Portanto, o “cooperative compliance” representa um avanço significativo e uma mudança de paradigma na relação jurídico-tributária e espera-se que essa seja de fato uma realidade cada vez mais próxima, especialmente em razão do período de transição da reforma tributária que se aproxima, momento em que o contribuinte terá ainda mais incertezas jurídicas sobre a apuração e pagamento de seus tributos.

As medidas de conformidade tributária têm o potencial de trazer benefícios para a sociedade como um todo, resultando em uma arrecadação tributária mais efetiva e menos custosa. No entanto, precisam de muito aprimoramento, especialmente em relação ao programa Confia, que parece trazer mais desvantagens do que benefícios, além de expor o contribuinte à eventuais interpretações desfavoráveis sobre suas operações em tempo real.

Portanto, mais do que projetos de lei e textos normativos, o grande desafio do “cooperative compliance” brasileiro é superar uma barreira cultural (e até de confiança institucional) que existe entre os contribuintes e o fisco.

Artigo publicado originalmente no Conjur.