Mídia
Nos últimos anos as questões tributárias têm passado por muitas discussões no cenário político brasileiro, especialmente em razão da recém e novel reforma tributária do consumo (Emenda Constitucional nº 132/23 e LC nº 214/25) e discussões sobre a reforma tributária da renda.
Todo o atual modelo tributário está sendo repensado e reformulado. É como se o contribuinte e fisco estivessem deixando de lado “aquela velha opinião formada sobre tudo”, como na canção de Raul Seixas.
Especialmente no período de transição da reforma, será preciso exercer a capacidade de adaptação, pois haverá tributos, fatos geradores e conceitos totalmente novos para ambos os sujeitos da relação tributária.
Mas será que só a mudança no direito tributário material será suficiente? O governo federal, há algum tempo, vem propondo um estreitamento nas relações com o contribuinte, um conceito definido internacionalmente como “cooperative compliance” ou, em bom português, “conformidade tributária”.
“Cooperative compliance” é uma abordagem de gestão de conformidade tributária que enfatiza a transparência, a cooperação transparente e a comunicação aberta e proativa entre as autoridades fiscais e os contribuintes. O objetivo é melhorar a regularidade fiscal e reduzir a incerteza tributária por meio de uma relação de trabalho colaborativa e proativa entre contribuintes e Fiscos, em vez de uma abordagem puramente punitiva ou adversarial que existe atualmente.
A “conformidade cooperativa” já é realidade em vários países que fazem parte da OCDE e não é à toa que o Brasil está buscando esse modelo, já que pretende fazer parte dessa organização mundial.
No âmbito federal, a Receita Federal (RFB) tem buscado mudar sua postura ao promover programas testes sob a ótica do “cooperative compliance”, em especial com os programas Confia, Sintonia e Operador Econômico Autorizado (OEA).
Tais programas já estão sendo aplicados pela Receita Federal (Confia e Sintonia ainda em testes) e há um projeto de lei para instituição formal destes programas – PL nº 15/24, em trâmite na Câmara dos Deputados.
O programa Sintonia, recentemente instituído na forma de “Programa Piloto” pela Portaria/RFB nº 511/25, visa estimular cumprimento de obrigações tributárias e aduaneiras, por meio de concessão de benefícios aos contribuintes classificados com base nos critérios de (1) regularidade cadastral; (2) cumprimento tempestivo de obrigações acessórias, e; (3) exatidão de informações prestadas nas declarações e escriturações.
Dentre os benefícios concedidos aos contribuintes neste programa, destaca-se a análise prioritária de pedidos restituição, ressarcimento ou reembolso de tributos, no atendimento junto à RFB e na participação deliberativa em seminários, capacitações e fóruns consultivos promovidos pela RFB.
Já o programa Confia (Portaria/RFB nº 417/24) consolida uma série de medidas de aproximação do contribuinte que aderir, como por exemplo, o oferecimento de um canal de comunicação diferenciado na Receita Federal, para resolver questões de certidão de regularidade fiscal e compensações tributárias. Também prevê uma espécie de auditoria interna nas empresas, possibilitando a revisão de planejamentos tributários do contribuinte pela Receita Federal.
Embora pareça bem-intencionado, o programa Confia, da forma como atualmente previsto na portaria, ainda mantém uma relação desequilibrada entre fisco e contribuinte.
De um lado, tem-se a obrigação da empresa de compartilhar todas as informações sobre suas operações e permitir que a Receita Federal revise suas rotinas fiscais, declarações e recolhimentos, inclusive planejamentos tributários, tudo em tempo real, expondo o contribuinte à interpretação do fisco e a eventuais autuações.
Do outro lado, a Receita Federal deve apenas cumprir aquilo que já é esperado e previsto na legislação pátria: Um canal efetivo de atendimento ao contribuinte.
O PL nº 15/24, que visa a instituição definitiva dos programas, prevê ainda a exclusão da multa no caso de o contribuinte revelar um planejamento tributário que se entenda ilícito – algo muito próximo do instituto da denúncia espontânea, já existente no sistema tributário.
O referido projeto de lei encontra-se estagnado na Câmara dos Deputados, de modo que eventual melhoria e regulamentação do Confia não parece estar próxima de ocorrer. É preciso que os parlamentares percebam e corrijam essa discrepância entre as vantagens e obrigações que os contribuintes podem obter com tais programas.
Operador Econômico Autorizado
Ao contrário do Confia, o programa OEA — IN/RFB nº 2.154/2023 — oferece a simplificação dos procedimentos de importação e exportação sem expor o contribuinte à possíveis interpretações do fisco sobre suas operações.
Trata-se de uma certificação concedida pela Receita Federal a empresas que demonstram elevado grau de conformidade com as obrigações aduaneiras e tributárias, além de práticas eficazes de segurança na cadeia logística internacional.
Entre as principais vantagens para os contribuintes certificados estão a redução de custos operacionais e prazos nas operações de importação e exportação, prioridade no despacho aduaneiro, menor incidência de inspeções, maior previsibilidade e segurança nas transações, além de tratamento diferenciado perante a Receita Federal.
Ou seja, é um programa que contribui efetivamente para as operações do contribuinte, trazendo melhorias da sua imagem no mercado, aumentando sua competitividade e fortalecendo sua posição no comércio internacional, além de trazer diversas benesses ao próprio Fisco federal.
Autorregularização e transações
Além dos programas mencionados, também merece destaque a Autorregularização Incentivada, que permite o pagamento de tributos com anistia de juros e multas e o Litígio Zero, que concede descontos e autoriza o uso de prejuízo fiscal para quitar débitos em discussão administrativa. Ambos os programas foram instituídos pela Receita Federal.
A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional também adotou medidas cooperativas, como as transações tributárias, pareceres que dispensam contestar teses pacificadas nos tribunais e os Negócios Jurídicos Processuais, que permitem ajustes como calendarização de atos e substituição de bens penhorados.
Esses instrumentos são exemplos muito efetivos do estreitamento da relação entre os contribuintes e o Fisco Federal, bem como da redução da litigiosidade da tributação de maneira mais eficiente e cooperativa.
Portanto, o “cooperative compliance” representa um avanço significativo e uma mudança de paradigma na relação jurídico-tributária e espera-se que essa seja de fato uma realidade cada vez mais próxima, especialmente em razão do período de transição da reforma tributária que se aproxima, momento em que o contribuinte terá ainda mais incertezas jurídicas sobre a apuração e pagamento de seus tributos.
As medidas de conformidade tributária têm o potencial de trazer benefícios para a sociedade como um todo, resultando em uma arrecadação tributária mais efetiva e menos custosa. No entanto, precisam de muito aprimoramento, especialmente em relação ao programa Confia, que parece trazer mais desvantagens do que benefícios, além de expor o contribuinte à eventuais interpretações desfavoráveis sobre suas operações em tempo real.
Portanto, mais do que projetos de lei e textos normativos, o grande desafio do “cooperative compliance” brasileiro é superar uma barreira cultural (e até de confiança institucional) que existe entre os contribuintes e o fisco.
Artigo publicado originalmente no Conjur.