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A Emenda Constitucional nº 132/2023, que instituiu a reforma tributária sobre o consumo, representa uma das transformações mais relevantes no sistema tributário brasileiro das últimas décadas. O tema não mais é uma novidade e já é possível notar que muitas empresas estão se movimentando, mapeando riscos e oportunidades, bem como antecipando cenários do ponto de vista tributário.
Contudo, um aspecto essencial segue fora do radar de muitos empresários e departamentos jurídicos: os impactos da reforma tributária nos contratos privados, especialmente naqueles de longa duração, firmados sob a lógica do sistema tributário atual e com efeitos que se projetam no tempo – para além da reforma.
Grande parte dos contratos vigentes foi elaborada com base no regime atual de tributação, marcado por regras complexas de cumulatividade, regimes especiais, alíquotas diferenciadas e obrigações acessórias setoriais. Nesse contexto, cláusulas relativas a preços, encargos, repasse de tributos e riscos contratuais foram estipuladas segundo parâmetros que estão prestes a sofrer profundas alterações ou até mesmo deixar de existir.
Com a aprovação da reforma, essa base jurídica e econômica será alterada. E as mudanças não se limitarão à alíquota ou à forma de incidência dos tributos, mas também afetarão a maneira como esses tributos serão apropriados, creditados e repassados entre as partes. Isso pode implicar oneração ou desoneração inesperada, gerando desequilíbrio econômico-financeiro nas relações contratuais.
Muitos contratos não definem claramente se os preços praticados são líquidos de tributos. Outros estipulam que os valores incluem todos os tributos incidentes. Nessas hipóteses, a mudança na tributação poderá alterar significativamente o resultado econômico da operação, trazendo vantagem para uma das partes em detrimento da outra, o que naturalmente tende a gerar disputas e renegociações.
Contratos de fornecimento, prestação de serviços, parcerias de longa duração, contratos de construção e de investimento são apenas alguns exemplos de instrumentos que poderão ser diretamente afetados.
Dessa forma, a ausência de revisão contratual diante desse novo cenário pode levar a interpretações conflitantes sobre cláusulas de repasse de tributos ou de alocação de encargos adicionais. E, diferentemente dos contratos administrativos, em que a própria legislação prevê mecanismos de recomposição contratual em razão da reforma, os contratos privados foram deliberadamente excluídos dessa previsão legal.
Como dispõe o art. 373, § 2º, da Lei Complementar nº 214/2025, que regulamenta a CBS e o IBS: “O disposto neste Capítulo não se aplica aos contratos privados, os quais permanecem sujeitos às disposições da legislação específica.”
Em outras palavras, a legislação não estenderá aos contratos privados os instrumentos automáticos de reequilíbrio previstos para o setor público. Nestes, caberá às partes a responsabilidade por prever, negociar e aplicar os ajustes necessários, com base na autonomia da vontade e nos princípios da boa-fé objetiva e da função social do contrato.
Nesse cenário, é melhor não esperar uma intervenção corretiva dos tribunais para restaurar o equilíbrio das relações privadas afetadas pela reforma. Isso porque, neste momento, ainda não é possível assegurar que os tribunais tratarão a reforma tributária como uma situação “inesperada” e “imprevisível”, apta a autorizar a rescisão contratual sob o fundamento da “onerosidade excessiva” para uma das partes, conforme autoriza o nosso Código Civil.
Em situações como a que estamos vivenciando, o Judiciário tende a respeitar a vontade das partes, especialmente quando se trata de contratos entre agentes econômicos experientes e em iguais condições de negociação (diferentemente dos contratos administrativos).
Por isso, é altamente recomendável que os contratos contem com cláusulas específicas voltadas à gestão de riscos tributários, tais como:
- Revisão do equilíbrio econômico-financeiro diante de alterações legislativas significativas;
- Reajuste ou renegociação periódica dos preços contratuais;
- Critérios objetivos para o repasse ou absorção de novos tributos e encargos;
- Definição clara de responsabilidades quanto ao recolhimento de tributos e cumprimento de obrigações acessórias.
A reforma prevê um período de transição entre 2026 e 2033, durante o qual coexistirão o regime atual e o novo sistema tributário. Esse ambiente híbrido — com regras sobrepostas, ajustes progressivos e impactos distintos por setor — deve ampliar a complexidade e a insegurança jurídica nas relações contratuais.
Certamente, divergências e conflitos contratuais decorrentes da reforma tributária serão levados ao Poder Judiciário. Contudo, considerando a existência desse período de transição, é importante ter claro que a janela de oportunidade está aberta agora, enquanto ainda é possível revisar cláusulas, ajustar expectativas e documentar, de forma consensual, as condições para adaptação da relação contratual ao novo modelo tributário, a fim de garantir a continuidade e paridade dos negócios sem litígios difíceis de prevenir ou resolver.