Mídia
O cenário tributário tem sido agitado para os marketplaces. Se no ambiente internacional as plataformas têm sido colocadas na posição de responsáveis pelo recolhimento de tributos devidos em operações digitais B2C transfronteiriças, nas situações em que não há como se exigir o IVA ou o imposto de renda dos não residentes pelos países de consumo, recentemente no Brasil diversos estados passaram a lhes atribuir a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS devido pelos vendedores nas operações ocorridas em suas plataformas, em discutíveis hipóteses de solidariedade e responsabilidade que vêm causando diversas controvérsias, sobretudo pela inaptidão do ICMS para servir de objeto dessas regras e os vícios de ilegalidade e inconstitucionalidade presentes nas legislações.
Isso sem falar das pretensões de se instituir um digital services tax brasileiro, verificadas em dois projetos de lei que pretendem cobrar, respectivamente, uma CIDE-Digital e uma alíquota majorada de Cofins de marketplaces pertencentes a grandes grupos internacionais com atuação no Brasil. Por sorte, tais projetos pecam por um sem número de falhas técnicas que muito dificultam – senão inviabilizam – a sua tramitação e aprovação.
O último – e talvez mais ousado – movimento em terras brasileiras foi a apresentação, pelo Governo Federal, do Projeto de Lei 3.887, de 21 de julho de 2020 (PL), que institui a Contribuição Social sobre Obrigações com Bens e Serviços (CBS). O PL pretende substituir o PIS e a Cofins pelo novo tributo, supostamente mais simples e com menos regimes de exceção (monofásico, cadeias desoneradas etc.) do que as atuais contribuições sobre a receita, com destaque para uma proposta de ampla e quase irrestrita não cumulatividade.
O projeto, sem sombra de dúvidas, é muito melhor do que a legislação atual do PIS/Cofins, extremamente complexa e pulverizada, bem como é positivo por absorver uma série de princípios de simplificação que vêm sendo discutidos nas principais propostas de reforma da tributação indireta em trâmite no congresso. Logo, será mais fácil acoplar os demais tributos sobre o consumo na proposta, como parece ser a intenção do governo.
Contudo, o PL apresenta alguns pontos que merecem reflexão, como é o caso dos dispositivos que regulam a tributação dos marketplaces.
Com efeito, o PL define as plataformas digitais como “qualquer pessoa jurídica que atue como intermediária entre fornecedores e adquirentes nas operações de vendas de bens e serviços de forma não presencial, inclusive na comercialização realizada por meios eletrônicos”. Excluem-se as PJs que executem somente uma destas atividades: (i) fornecimento de acesso à internet; (ii) processamento de pagamentos; (iii) publicidade; e (iv) procura de fornecedores, caso não cobrem o serviço com base nas vendas realizadas.
Pela amplitude da definição adotada, os grandes portais de intermediação de compra e venda de mercadorias e de prestações de serviços estão abrangidos, o que inclui grandes empresas internacionais da chamada “economia digital”.
Com relação aos pontos de atenção, nas operações ocorridas integralmente em território nacional as plataformas digitais serão responsáveis pelo recolhimento da CBS incidente sobre as operações realizadas por seu intermédio nas hipóteses em que a pessoa jurídica vendedora não registre a operação mediante a emissão de documento fiscal eletrônico.
Aqui não fica claro se a hipótese é de solidariedade, prevista no art. 124, do Código Tributário Nacional (CTN), ou de responsabilidade de terceiros, regulada pelos arts. 128 a 135. Esses institutos trazem regimes bastante distintos: enquanto na solidariedade dois ou mais sujeitos podem ser considerados os contribuintes de determinado tributo, situação em que pagam tributos próprios, na responsabilidade de terceiros um sujeito com relação direta com o fato gerador é chamado a adimplir o tributo no lugar do contribuinte original, dependendo de sua relação com o contribuinte original e o fato tributado.
No caso específico da solidariedade, o CTN arrola duas hipóteses: (i) quando dois sujeitos tenham “interesse comum” na situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária; e (ii) quando a lei expressamente definir. A primeira hipótese não é aplicável ao caso dos marketplaces, pois, conforme jurisprudência pacífica do STJ, não basta que dois sujeitos tenham interesse econômico comum em uma dada operação, pois deve haver interesse jurídico, ou seja, que ambos estejam no mesmo polo da relação jurídica a ser tributada, como ocorre com os condôminos em relação ao IPTU. Considerando que a receita com a venda dos produtos é auferida pelos vendedores, não pelo marketplace, não parece haver interesse jurídico comum na situação.
Já a segunda hipótese, embora aparente conferir uma plena liberdade ao legislador, deve ser aplicada com parcimônia e apenas em situações que permitam a criação de regras de solidariedade, o que não é o caso de toda e qualquer operação de marketplaces, notadamente nos casos em que os pagamentos não passam pela plataforma. Considerando que a CBS é uma contribuição que pretende incidir sobre a receita dos contribuintes, parece não haver qualquer interesse jurídico ou mesmo participação do marketplace na ocorrência do fato gerador, eis que sequer provisória e financeiramente a receita tributável pelo contribuinte transitaria pelo seu patrimônio em tais casos.
Além disso, o fato “deixar de emitir nota fiscal”, por corresponder a um ilícito, não poderia acarretar a colocação das plataformas como contribuintes solidários, eis que, ao assim fazer, o PL colore o fato gerador do tributo (devido pelo marketplace, no caso) de um elemento de ilicitude de todo incompatível com o art. 3º, do CTN, que rechaça a incidência de tributos sobre fatos ilícitos.
No mais, em sendo um tributo pretensamente não cumulativo, como demandar a CBS de um sujeito que não terá direito aos créditos correspondentes no regime, como seria o caso dos marketplaces em relação aos créditos sobre a aquisição das mercadorias vendidas?
Adicionalmente, o mecanismo sugerido no PL impõe aos marketplaces que fiscalizem a posteriori todas as operações de todos os seus vendedores, tarefa essa que pode inviabilizar suas operações, na medida em que o fechamento dos negócios no ambiente virtual, com o fluxo de pagamentos, sempre antecede a emissão de documentos fiscais, o que apenas ocorre em momento próximo ao da saída física das mercadorias. A altíssima complexidade de controlar todas as operações de todos os vendedores, em si, também poderia inviabilizar as operações, sobretudo dos marketplaces menores, em evidente natureza confiscatória da liberdade negocial.
Tampouco as regras de responsabilidade de terceiros seriam aplicáveis ao caso. Primeiramente, deve ser lembrado que as hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN são exaustivas, razão pela qual não pode haver hipótese de responsabilização distinta daquelas expressamente arroladas, conforme art. 128 do CTN.
Ocorre que as hipóteses de responsabilização dos marketplaces não se encaixam em nenhuma das hipóteses dos arts. 134 e 135, do CTN. No caso do art. 134, os responsáveis eleitos são (i) os pais, pelos tributos devidos pelos filhos menores; (ii) tutores e curadores, pelos tutelados ou curatelados; (iii) administradores de bens de terceiros, pelos tributos devidos pelos terceiros; (iv) inventariante, pelos devidos pelo espólio; (v) síndico e comissário, pelos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; (vi) tabeliães, escrivães e demais serventuários, pelos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício; (vii) os sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. Mesmo nos casos extremos em que as plataformas controlam os estoques dos vendedores, não ocorre propriamente a “administração de bens de terceiros” (hipótese “iii”), pois o objeto das operações é o suporte à operação de venda, não administrar estoques.
Já o art. 135 responsabiliza alguns sujeitos pelas obrigações tributárias resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, a saber: (i) as pessoas referidas no art. 134; (ii) os mandatários, prepostos e empregados; (iii) os diretores, gerentes ou representantes de pessoas jurídicas de direito privado.
Embora existam outros fundamentos para afastar o enquadramento dos marketplaces nas hipóteses de responsabilidade de terceiros, a simples inadequação entre as hipóteses arroladas e as atividades mais habituais das plataformas já é suficiente para tanto.
No tocante às operações transfronteiriças também existem alguns pontos de questionamento. Nesse ponto, duas são as hipóteses de responsabilização das plataformas residentes no exterior: (i) “responsabilidade solidária” pelo recolhimento da CBS incidente sobre a importação de bens, inclusive dos acréscimos e das penalidades cabíveis, em relação às operações realizadas por seu intermédio; e (ii) “responsabilidade” na importação de serviços realizada por pessoa natural por seu intermédio. Em ambas as hipóteses, as plataformas deverão obter cadastro eletrônico, a ser fornecido oportunamente pela RFB, em modelo semelhante ao existente na União Europeia.
Essas obrigatoriedades, contudo, também são de difícil enquadramento, respectivamente, nas regras de solidariedade e responsabilidade de terceiros previstas no CTN, pelas razões já expostas. Ademais, existe a dúvida quanto à competência tributária brasileira para impor as condições de contribuinte e responsável, bem como obrigações acessórias, em pessoas jurídicas não residentes, por uma questão de territorialidade.
No mais, embora sejam louváveis as intenções de reduzir a evasão fiscal e acompanhar as tendências internacionais de tributação que buscam alcançar esse objetivo, conforme textualmente declarado na justificativa do PL, nem tudo o que ocorre no exterior pode ser automática e acriteriosamente aplicável no Brasil no tocante a tributação, pois o sistema brasileiro ainda tem regras claras, veiculadas por lei complementar por exigência constitucional, que devem ser respeitadas pelo legislador ordinário. Nesse ponto, deve haver uma ampla reforma do CTN antes que tais medidas sejam adotadas no país.
*Maurício Barros é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados. Doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP e mestre em Direito Tributário pela PUC/SP.
*Artigo postado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.