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Antes mesmo da autorização de uso das vacinas contra a Covid-19 pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), alguns grupos de empresários já demonstravam interesse na aquisição de doses do imunizante, a fim de aplicar em seus colaboradores e retomar a antiga forma de trabalhar.
Naquela ocasião, não havia legislação específica sobre o assunto, e com a Lei 14.125/2021 as pessoas jurídicas de direito privado passaram a poder adquirir diretamente vacinas contra a Covid-19 que tenham pelo menos autorização para uso emergencial pela Anvisa.
Além de permitir a compra de vacinas, a lei também autoriza que a União, os estados, o Distrito Federal e os municípios assumam os riscos referentes à responsabilidade civil pelos eventos adversos pós-vacinação. Isso ocorreu porque os fabricantes incluíram nos contratos cláusulas de isenção completa de responsabilidade pelos efeitos colaterais da vacina comercializada.
Diante disso, surgiu a seguinte dúvida: considerando que os particulares estão autorizados a adquirir vacinas diretamente do fabricante, significa que também poderão ser responsabilizados pelos eventos adversos pós-vacinação?
A lei silencia quanto à eventual responsabilidade do particular, limitando-se a disciplinar a questão com relação à União, estados, Distrito Federal e municípios, inclusive prevendo a possibilidade de constituição de garantias e contratação de seguro privado para cobertura dos riscos pelos entes públicos.
Portanto, pela simples leitura da lei, é possível concluir que o particular não poderá ser responsabilizado por eventos adversos, da mesma forma como poderá ocorrer com o poder público. E tal conclusão vai ao encontro do ordenamento jurídico brasileiro.
O direito à saúde está constitucionalmente assegurado, sendo um dever do Estado (gênero) garantir, por meio de políticas sociais e econômicas, a redução do risco de doenças e o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.
Para garantir tal direito, a CF/88 implementou o Sistema Único de Saúde (SUS), por meio do qual a população passou a ter direito à saúde universal gratuita, financiada com recursos de União, estados, Distrito Federal e municípios, tornando a responsabilidade entre esses entes linear.
Quanto à responsabilidade civil do Estado, o artigo 37, §6º, da CF prevê: “As pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Nos termos desse dispositivo que consagra a teoria do risco administrativo, a responsabilidade civil do Estado é objetiva, de modo que basta a existência de uma ação, mesmo que lícita, de um prejuízo e do nexo de causalidade entre esses dois elementos, para que se imponha o dever de indenizar. Ou seja, não se exige a comprovação de dolo ou culpa do agente.
Sendo certo que é um dever do Estado a garantia de saúde e que a vacinação é uma das medidas necessárias ao combate de algumas doenças, não restam dúvidas de que é sua obrigação adotar todas as medidas necessárias para assegurar que a população tenha acesso aos imunizantes.
O Programa Nacional de Imunizações (PNI) foi criado pela Lei 6.259/75 e constitui o marco das políticas públicas de vacinação no Brasil, a partir de quando se regulamentaram as ações de vigilância epidemiológica, vacinação e notificação compulsória de doenças no país.
Por ser anterior à CF/88 e ao SUS, a Lei 6.259/75 atribuiu ao Ministério da Saúde a competência para a elaboração do PNI, com a definição e calendário das vacinações a serem observados de modo sistemático e gratuito. Portanto, o PNI é de inteira responsabilidade da União, por meio do Ministério da Saúde.
Cumpre ressaltar que, no Brasil, uma vacina é tratada como um medicamento e sua utilização é controlada e sujeita à autorização pela Anvisa, conforme determina a Lei 6.360/76. Portanto, é a Anvisa, agência vinculada ao Ministério da Saúde, a responsável pela autorização de uso das vacinas em território nacional, inclusive contra a Covid-19.
É certo que o processo de vacinação em geral pode envolver outros atores que não apenas os entes públicos, a exemplo do laboratório que fabrica a vacina, da clínica particular e do empregador que a aplica, pois nem sempre a sua administração se dá pela rede pública. Mas é importante destacar o protagonismo do Estado quanto ao controle técnico das vacinas autorizadas pela Anvisa, bem como a inclusão no PNI, com a promoção de campanhas fortemente ativas para conscientizar a população quanto à importância do movimento.
Assim, parece não restar dúvidas de que a responsabilidade civil pelos eventos adversos decorrentes das vacinas aplicadas na população é do Estado. Inclusive, esse é o entendimento dos tribunais. No julgamento do REsp 1514775/SE, em 10/03/2016, o ministro relator Napoleão Nunes Maia Filho sustentou a responsabilidade civil da União para indenizar vítima de dano decorrente da vacina contra a H1N1.
O ministro ponderou a responsabilidade civil da União com fundamento no §6º do artigo 37 da CF, sob a consagração da teoria do risco administrativo, e registrou que prestação de serviço público, por ente federado ou sujeito privado, persevera a responsabilidade civil do Estado, uma vez que a atividade desenvolvida pode trazer consigo um risco inerente.
Além disso, o ministro pautou-se no fato de que o PNI é gerenciado pelo Ministério da Saúde, que, por sua vez, é de responsabilidade da União. Ressaltou, ainda, que a utilização de qualquer vacina é autorizada pela Anvisa, órgão federal vinculado ao Ministério da Saúde e, portanto, de responsabilidade da União.
É importante destacar que, no referido caso, o sujeito havia sido vacinado pela empresa que trabalhava à época. Ou seja, ainda que não tenha se utilizado do SUS para o ato de se vacinar, o ministro entendeu que a responsabilidade pelos eventos adversos daquela vacinação era da União.
Por se tratar de uma vacina muito recente, ainda não é possível prever se haverá ou não eventos adversos pós-vacinação contra a Covid-19, nem como o Judiciário se posicionará no que diz respeito à responsabilização dos particulares que adquirirem diretamente as doses do imunizante.
Isso porque, em que pese o posicionamento dos tribunais até aqui caminharem no sentido de que a responsabilidade é do Estado, é possível que se entenda que o §2º do artigo 1º da Lei 14.125/2015 pretendeu limitar essa responsabilidade às vacinas adquiridas pelo respectivo ente público, excluindo aquelas compradas pelas empresas.
Entretanto, não parece que essa tenha sido a intenção do legislador. Não faria sentido responsabilizar o particular por algum efeito colateral da vacina porque, ao que tudo indica, a autorização foi concedida justamente para acelerar o processo de imunização.
Pela lei, o particular já está sendo obrigado a doar vacinas ao SUS (100% até que os grupos prioritários tenham sido vacinados e 50% após isso), sendo proibido de vendê-las em qualquer cenário. O fato é que, se esse ente privado correr o risco de ser responsabilizado pelos possíveis eventos adversos pós-vacinação no lugar do Estado, a aquisição das vacinas pelas empresas será baixíssima, o que não é interessante para o combate à pandemia e também é bastante desfavorável do ponto de vista econômico.
*Artigo postado originalmente no Conjur.