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Carlos Henrique da Silva, Heitor Kulig Branco, Livia Fabor de Queiroz no JOTA Apostas online e responsabilidade corporativa 4 de outubro de 2024

Em um país carente de investidores no mercado formal, empresas ajudarão a si e à sociedade ao exercerem sua responsabilidade.

Não faltam pesquisas com números expressivos dos gastos dos brasileiros com apostas online e seu impacto na economia. A Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC) divulgou que 63% dos brasileiros que apostam online tiveram suas rendas comprometidas e quedas no consumo de roupas, mercado e itens de beleza.

Uma pesquisa do Banco Central revelou que, de janeiro a agosto de 2024, R$ 3 bilhões recebidos a título de Bolsa Família, um benefício social destinado à dignidade e ao sustento de família em situação de vulnerabilidade, foram direcionados às chamadas bets.

Os efeitos das bets são tão significativos que associações do comércio e varejo que foram bastante impactados por essa situação ajuizaram uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIN) direcionada ao Supremo Tribunal Federal (STF) para que, até que existam políticas públicas efetivas para contenção das apostas indiscriminadas e jogo responsável, o governo suspendesse essas atividades.

As apostas online foram regularizadas no Brasil em 29 de dezembro de 2023 pela Lei 14.790/23, que criou a modalidade de apostas de quota fixa. Nos termos dessa lei, uma pessoa aposta um valor, em dinheiro, que será multiplicado por um fator numérico (prêmio) caso o apostador acerte determinado evento futuro e de resultado desconhecido, normalmente associado a eventos esportivos, notadamente ao futebol.

No Brasil, o investimento em produtos financeiros, como ações e fundos, ainda é restrito a uma pequena parcela da população, dada a baixa tolerância de potenciais investidores a perdas e os ganhos estarem atrelados a prazos mais longos. Nesse contexto, as bets rapidamente ganharam força como uma falsa percepção de investimento, ganhos rápidos e fonte secundária de renda.

Ao contrário de investimentos formais e regulados, que contam com análises de perfil de renda e de tolerância à exposição de riscos de liquidez, as bets, cujo propósito é recreativo, podem aceitar apostas de qualquer pessoa não impedida pela lei, como os menores de 18 anos e diagnosticados, por laudo médico, com ludopatia (vício em jogos).

A facilidade do acesso às bets, via casas de apostas virtuais, seja por apps, sites ou redes sociais, e a falta de mecanismos de controles efetivos de acesso por pessoas viciadas em jogos, mostra que brasileiros seguem perdendo dinheiro.

Inclusive, o que é pouco falado, é que aqueles que tiverem sorte com as bets serão tributados: o Leão morderá o importe de 15%, a ser retido a título de Imposto de Renda sobre o prêmio líquido a ser auferido pelo apostador que, de acordo com o artigo 31, §1º, da Lei das Bets, é o resultado positivo auferido nas apostas de quota fixa realizadas a cada ano, após a dedução das perdas incorridas com apostas da mesma natureza, incidentes sobre os prêmios líquidos que excederem o valor da primeira faixa da tabela progressiva anual do IRPF (primeira faixa – R$ 2.259).

Em um cenário de prejuízos, incertezas e efeitos no caixa das empresas, que tiveram seus ganhos reduzidos pelos gastos expressivos com bets, as apostas online podem, ainda, ter outros desdobramentos no mundo corporativo.

O endividamento pode fazer com que dilemas éticos surjam com mais frequência, pois trabalhadores endividados estarão mais propensos a cometerem fraudes internas, desvio de recursos, atos de corrupção privada, fracionamento de reembolsos de saúde, e até mesmo impactar benefícios corporativos, que ora podem estar sendo oferecidos, mas que podem minguar no mercado de trabalho, como, por exemplo, a concessão de empréstimos consignados, com desconto em folha.

Além disso, o ambiente de trabalho pode se tornar hostil, mais propenso a incidentes de assédio, além de menos produtivo e seguro, considerando que pessoas pressionadas por dívidas tendem a estar mais estressadas e menos focadas em suas responsabilidades e afazeres.

O governo brasileiro está assustado com o fenômeno das bets e tem dado respostas rápidas aos problemas que estão longe de serem de simples solução. Pode ser uma tendência o incentivo de uma atuação por parte dos agentes privados, notoriamente as empresas, para que atuem no tema, tanto para se protegerem de riscos de seus colaboradores associados às apostas online, como também no exercício da sua função social.

O programa de compliance da empresa pode atuar no reforço de treinamentos sobre conduta ética e de tolerância zero a condutas de assédio, reforçar seus controles internos para prevenção e detecção de desvios de recursos financeiros e reafirmar seu compromisso com ambiente de trabalho seguro e livre de acidentes, com foco na produtividade e saúde mental. Além disso, pode criar conteúdos para esclarecimento sobre jogos e apostas online.

A empresa também pode revisar ou criar políticas internas sobre o uso de seus dispositivos corporativos, ressaltando que são para uso exclusivo das atividades profissionais desempenhadas, podendo ser objeto de monitoramento, desde que seja regulado no contrato de trabalho ou mediante adesão formal do trabalhador, e até mesmo proibir o acesso a sites de apostas e o bloqueio de apps, mediante uso de recursos tecnológicos da empresa.

As empresas também podem aumentar o escopo dos seus programas de acolhimento a colaboradores, geralmente focados na saúde mental, para abarcar aqueles que se encontrem em situação de dificuldade financeira ou de vício em jogos, e até mesmo incorporar noções de educação financeira, para distinção do que é jogo (diversão) do que é investimento (planejamento financeiro).

Os relacionamentos com fornecedores e patrocinadores também devem ser revisitados e realizadas pesquisas de idoneidade, visto que as bets têm sido alvo de notícias desabonadoras e investigações, ainda pendentes de solução, que podem acarretar riscos reputacionais às empresas que possam estar na sua cadeia de suprimentos.

Em um país carente de investidores no mercado formal e regulado e sem tradição de educação financeira em lares e escolas, as empresas ajudarão a si e à sociedade ao exercerem sua responsabilidade corporativa, na resposta aos desafios provocados pelo fenômeno social e econômico das bets.

Artigo publicado originalmente no JOTA.