Mídia
A contratação de serviços profissionais prestados por pessoas jurídicas e executados por um de seus sócios ou empregados, em caráter personalíssimo ou não, é tema que de longa data gera controvérsias, tendo sido objeto de diversas discussões em âmbito administrativo e judicial, com destaque para alguns julgamentos emblemáticos no âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF.
Com o objetivo de conferir maior segurança às relações jurídicas e privilegiar o direito ao livre exercício de atividade econômica, o legislador inseriu o artigo 129, à Lei nº 11.196/2008, conhecida como “Lei do Bem”, com a seguinte redação:
“Art. 129. Para fins fiscais e previdenciários, a prestação de serviços intelectuais, inclusive os de natureza científica, artística ou cultural, em caráter personalíssimo ou não, com ou sem a designação de quaisquer obrigações a sócios ou empregados da sociedade prestadora de serviços, quando por esta realizada, se sujeita tão-somente à legislação aplicável às pessoas jurídicas, sem prejuízo da observância do disposto no art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 – Código Civil.”
Mesmo após a promulgação da citada Lei, os órgãos de fiscalização e alguns julgamentos administrativos e judiciais, não raras as vezes, concluem que os serviços intelectuais, científicos, artísticos e culturais são prestados por sociedades empresárias criadas com o exclusivo fim de reduzir a arrecadação tributária, burlar as regras previdenciárias e evitar o reconhecimento de suposto vínculo empregatício.
Em regra, a descaracterização da pessoa jurídica gera contingências tanto para o tomador, para quem recai o ônus do recolhimento das contribuições sociais e retenções tributárias eventualmente cabíveis, quanto para o próprio prestador do serviço, que passa a ser obrigado a submeter os rendimentos auferidos à tributação correspondente da pessoa física (percentualmente mais gravosa).
Diante de um cenário de insegurança jurídica, a Confederação Nacional da Comunicação Social – CNCOM ajuizou a Ação Declaratória de Constitucionalidade nº 66 perante o Supremo Tribunal Federal, recentemente julgada pelo plenário da Corte.
Sob a relatoria da Ministra Carmen Lúcia, em 11/12/2020, o STF, por maioria de votos, declarou a constitucionalidade do mencionado artigo 129, da Lei do Bem, reconhecendo a licitude e regularidade da constituição de sociedade dedicada à prestação de serviços intelectuais, científicos, artísticos e culturais, personalíssimos ou não.
Ao fundamentar o seu voto, a Ministra sustenta que a norma instituída pela Lei do Bem:
- encontra total harmonia ao texto constitucional que garante o direito à livre iniciativa e ao livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão em qualquer atividade econômica.
- deve extrapolar os limites fiscais e previdenciários, especialmente em se tratando da definição das relações jurídicas nos tempos atuais.
Em relação a este último ponto, ressaltou-se que o próprio STF, ao julgar a ADPF nº 324 e o Recurso Extraordinário nº 958.252 (Tema 725 – Repercussão Geral), já havia sedimentado o entendimento quanto à legalidade da terceirização da atividade-meio ou fim, não se configurando relação de emprego em tais casos.
O Ministro Dias Toffoli, acompanhando os fundamentos constantes do voto da Ministra Relatora, fez importantes apontamentos sobre o tema:
- o tratamento previsto na chamada “Lei do Bem” dispõe sobre um benefício concedido pelo legislador para as pessoas prestadoras de serviços intelectuais, seja em caráter personalíssimo ou não;
- a citação do artigo 50, do Código Civil, ao final do artigo 129, da Lei nº 11.198/2008, garante ao Poder Judiciário a clara prerrogativa de desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade nos casos em que a estrutura é desenhada pelo contribuinte com intuito fraudulento.
O posicionamento definitivo da Suprema Corte é de extrema importância para uma série de sociedades, como, por exemplo, para aquelas constituídas para gerenciar o direito de imagem de atletas, artistas, e para diversos profissionais liberais. Como já ressaltado, até então, diversas autuações fiscais foram lavradas pela Receita Federal do Brasil e pelo INSS sob o entendimento de que o direito de imagem, por ser personalíssimo, não poderia ser explorado economicamente por uma sociedade criada pelo próprio detentor, à exceção da EIRELI, em razão da sua estrutura jurídica prevista no artigo 980-A, do Código Civil.
Aguarda-se o trânsito em julgado da mencionada decisão do STF, quando será atribuído efeito vinculante à orientação jurisprudencial não somente perante o Poder Judiciário, mas também para a Administração Pública, nos termos do que dispõe o artigo 28, parágrafo único, da Lei nº 9.868/99. Outro ponto importante a ser observado é que, sendo interpretativo, o dispositivo legal julgado constitucional retroage para alcançar atos ou fatos pretéritos (art. 106, I, do Código Tributário Nacional).
Isto significa dizer, em última análise, que a declaração de constitucionalidade da norma deve servir orientação para que a vontade do legislador seja, de fato, alcançada. Neste particular, vale relembrar as justificativas apresentadas pelo Senado Federal à época em que se discutia o texto da então MP nº 255/05 (posteriormente convertida na “Lei do Bem”):
“os princípios da valorização do trabalho humano e da livre iniciativa previstos no artigo 170 da Constituição Federal asseguram a todos os cidadãos o poder de empreender e organizar seus próprios negócios. O crescimento da demanda por serviços de natureza intelectual em nossa economia requer a edição de norma interpretativa que norteie a atuação dos agentes da administração pública e as atividades dos prestadores de serviços intelectuais, esclarecendo eventuais controvérsias sobre a matéria“
– grifo não constante do original –
Nesse contexto, com o efeito vinculante, espera-se:
i) a consequente revisão de determinadas condutas fiscais e atos normativos atualmente vigentes, como, por exemplo, o artigo 229, §2º, do Regulamento da Previdência Social, segundo o qual o agente fiscal a “deverá desconsiderar o vínculo pactuado e efetuar o enquadramento como segurado empregado“;
ii) a aplicação do precedente para casos anteriores e posteriores à Lei nº 11.198/2008; e, por fim:
iii) que o ambiente jurídico mais estável favoreça a constituição de sociedades e o desenvolvimento de negócios, inclusive para gerenciamento do direito de imagem de artistas e desportistas, contribuindo para o crescimento do empreendedorismo no Brasil.
Evidentemente, para evitar-se eventual desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, a constituição de estruturas desta natureza deve ser devidamente planejada dentro dos limites legais e com propósito negocial definido de forma adequada.