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Recentemente publicada, a Lei n° 13.988/2020 colocou ainda mais combustível na já acalorada discussão envolvendo a constitucionalidade e a legalidade do voto de qualidade, utilizado, no caso, como mecanismo de solucionamento dos julgamentos coletivos concernentes à revisão administrativa dos lançamentos tributários.
De um lado, os contribuintes, baseados nas estatísticas, defendem que a esmagadora maioria dos julgamentos em que se fez necessário proferir o voto de qualidade foram favoráveis à Fazenda Nacional. Numericamente, pesquisa realizada pelo NEF/FGV [1] nos anos de 2015 e 2016 revelou que, nas turmas ordinárias, os julgamentos resolvidos pelo voto de qualidade foram quase 73% das vezes favoráveis à Fazenda. O cenário é ainda mais impressionante quando voltado para as discussões que chegaram à Câmara Superior, em que inacreditáveis 98% dos julgamentos finalizados pelo voto de qualidade foram favoráveis à Fazenda Nacional.
Já o lado fiscalista entende que a extinção do voto de qualidade desidrata a competência dos representantes da Fazenda, pois “nesses casos, de empate, a interpretação final administrativa sobre o litígio será determinada de forma automática, em decorrência de uma contagem, e não da apreciação da matéria, sobrepondo-se a um ato administrativo que goza de presunção de legitimidade e foi proferido em prol do interesse público” [2]. Além disso, permitir que o empate favoreça o contribuinte seria o mesmo que transferir para este a prerrogativa do exercício da revisão administrativa do crédito tributário constituído, beneficiando, inclusive, a evasão fiscal e o cometimento de ilícitos.
A despeito dos interessantíssimos argumentos utilizados pelos dois lados, o que decerto nos provocará a escrever, em outra oportunidade, sobre tão rico tema, fato é que hoje não se controverte que, com o advento da Lei n° 13.988/2020, em caso de empate no julgamento administrativo, o contribuinte inapelavelmente deve ser declarado vitorioso, mediante o cancelamento do lançamento tributário. O que se passa a discutir, daqui em diante, são as implicações decorrentes do referido diploma sobre os julgamentos administrativos já decididos pelo voto de qualidade, porém que ainda se encontram em discussão ativa perante o Poder Judiciário, por iniciativa do contribuinte.
O primeiro ponto a ser levantado diz respeito à possibilidade de se entender a nova lei como interpretativa. Isso porque o Supremo Tribunal Federal, citando o doutrinador francês Paul Roubier, afirma que “é, por sua natureza interpretativa a lei que, sobre um ponto em que a regra de direito é incerta ou controvertida, vem consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adoptado” [3].
O ministro Celso de Mello, por sua vez, expõe que:
“A função de interpretar as leis, nessa perspectiva, corresponde aos que aplicam, notadamente ao Poder Judiciário, e não aos que as criam ou produzem.
Não obstante as razões desse entendimento, não vejo como desacolher, em princípio, a possibilidade jurídico-constitucional de o Estado, mediante atos normativos próprios, veicular o sentido interpretativo das leis que ele mesmo editou” [4].
E nos parece ter sido exatamente o ocorrido, dado que o legislador reconheceu, pontualmente, por intermédio de outra norma jurídica, a incompatibilidade do §9° do artigo 25 do Decreto n° 70.235/1972 com os princípios norteadores da tributação no Brasil, de modo a elucidar que o voto de qualidade jamais poderia ter sido aplicado contra os contribuintes, em homenagem ao “in dubio pro contribuinte”, princípio fundamental da tributação no Brasil, reproduzido de forma cristalina no artigo 112, do Código Tributário Nacional (CTN).
O intuito interpretativo, então, mostra-se evidente pela forma como o novo dispositivo foi inserido na legislação. Vejamos que caso fosse a vontade do legislador simplesmente inovar, teria optado pelo ajuste diretamente realizado no §9° do artigo 25 do Decreto n° 70.235/1972, suprimindo no dispositivo a previsão do voto de qualidade. Mas isso não ocorreu, e a opção foi clara no sentido de modificar a Lei n° 10.522/2002, para que por intermédio dela fosse confirmada a única interpretação compatível com o ordenamento, reconhecendo a inaplicabilidade do referido instituto no processo administrativo tributário.
Assim, a Lei n° 13.988/2020 veio exatamente para harmonizar, pela via legislativa, a dicotomia existente entre o §9° do artigo 25 do Decreto n° 70.235/1972, que previa o voto em duplicidade dos presidentes das turmas, e o artigo 112 do Código Tributário Nacional, que determina que, em caso de dúvidas, a interpretação deve-se fazer de forma mais favorável ao acusado. Agiu o legislador, lembrando os dizeres de Roubier, para consagrar uma solução que a jurisprudência, por si só, poderia ter adotado.
Dessa forma, por se tratar de norma eminentemente interpretativa, não se pode chegar a outra conclusão senão aquela na qual seus efeitos devem retroagir a atos ocorridos antes da sua vigência, nos termos do artigo 106, I, do CTN.
Mas há mais: mesmo que não fosse a Lei nº 13.988/2020 interpretativa, sua retroação também é defensável sob a ótica do artigo 106, II, “a”, do CTN.
Isso porque, como bem se sabe, o artigo 142 do CTN estabelece que a constituição do crédito tributário se dá pelo lançamento, assim entendido o procedimento administrativo tendente a verificar a ocorrência do fato gerador da obrigação correspondente, determinar a matéria tributável, calcular o montante do tributo devido, identificar o sujeito passivo e propor a aplicação da penalidade cabível.
Indo adiante, as autuações fiscais são, nesse contexto, clássicos lançamentos tributários pertencentes à submodalidade “de ofício”, refletidos nas hipóteses do artigo 149 do CTN, sempre decorrentes do ilícito, da inexatidão ou da omissão do sujeito passivo que, embora obrigado a antecipar informações à fiscalização, deixa de fazê-lo.
Logo, nos parece livre de dúvida que as autuações fiscais são, por excelência, lançamentos de ofício, responsáveis por declarar e constituir o crédito tributário diante de uma infração cometida pelo sujeito passivo da obrigação. Não à toa, tais lançamentos se denominam autos de infração, que, uma vez impugnados pelos sujeitos passivos, chegam ao Carf, onde ordinariamente vinham sendo decididos em favor do erário pelo voto de qualidade.
Nesse contexto, a partir do momento que o artigo 28 da Lei n° 13.988/2020 determina que, em caso de empate, a discussão será favorável ao contribuinte, aquele lançamento de infração à legislação tributária cai por terra, por força do disposto no artigo 106, II, “a”, do CTN.
Tal dispositivo prevê que a lei será aplicada a eventos pretéritos quando deixar de definir determinado ato como infração, exatamente o que ocorreria se inexistisse o voto de qualidade, pois o Carf, diante da dúvida decorrente do empate em julgamento coletivo, deixaria de definir aquela conduta como infração, reconhecendo a prevalência do “in dubio pro contribuinte”.
Sendo assim, a chancela acerca da existência da infração passa a estar completamente viciada, na medida em que possui supedâneo no voto de qualidade, razão pela qual, à luz do artigo 106, II, “a”, do CTN, deve retroagir a nova norma para que se reconheça a improcedência dos lançamentos confirmados sob tais circunstâncias.
Por fim, porém não menos importante, é preciso que se insira o atual reconhecimento — legislativo — da inaplicabilidade do voto de qualidade no processo tributário como o resultado de uma insurgência há muito capitaneada pelos juristas brasileiros, que sempre entenderam tal mecânica como afrontadora da razoabilidade e da moralidade, trazendo desequilíbrio ao sistema ao proporcionar a manutenção de atos caracterizados por notória dúvida, e daí ofensivos à segurança jurídica e à confiança legítima das relações estabelecidas entre administração e administrados.
Mais do que o simples enfileiramento de princípios jurídicos, a assertiva acima serve para demonstrar que o cancelamento das autuações confirmadas pelo voto de qualidade, mesmo que tal confirmação tenha ocorrido antes da Lei nº 13.988/2020, é medida que se impõe, para que se resguarde, sobretudo, a justiça fiscal e a desejada previsibilidade das relações.
Como se pode verificar, a questão está longe de ser definida e seus desdobramentos ainda renderão longos debates jurídicos. Entretanto, fato é que a lei goza de plena vigência e tem, como visto, sólido embasamento para atingir julgamentos administrativos pretéritos.
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[1] https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/especiais/como-se-comporta-o-novo-carf-parte-iii-30012017
[2] http://unafisconacional.org.br/UserFiles/2020/File/17042020_Nota-Repudio.pdf
[3] RE 78141, Relator(a): Min. LUIZ GALLOTTI, Tribunal Pleno, julgado em 25/04/1974, DJ 31-05-1974
[4] ADI 605 MC, Relator(a): Min. CELSO DE MELLO, Tribunal Pleno, julgado em 23/10/1991.
Fonte: Conjur em 22/05/2020 às 11:04