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A tributação de renda das pessoas jurídicas residentes e domiciliadas no Brasil é regida, dentre diversos princípios norteadores, pelo princípio da universalidade também denominado world-wide income taxation, que veio a substituir o tradicional princípio da territorialidade (atualmente não seguido por nenhum país com economia similar à brasileira), o qual delimitava que apenas eram sujeitos à tributação os rendimentos auferidos no respectivo território nacional.
O princípio da universalidade, em sua acepção espacial, dá norte ao legislador ordinário para que este alcance, além dos rendimentos no território nacional, também os rendimentos auferidos no exterior. Sobre o tema, a ministra Regina Helena Costa[1] assim pontua: “quanto ao aspecto espacial, este é o território nacional, ainda que seja possível a tributação de renda obtida no exterior, respeitados os acordos que visam evitar a bitributação, em função do mesmo critério da universalidade”.
Valendo-nos das lições do saudoso professor Alberto Xavier ao abordar a adoção do princípio da universalidade no Brasil[2], o autor pontua que uma de suas primeiras manifestações em nosso arcabouço legal foi na edição do Decreto 2.413/88, que veio a alterar o Decreto 2.397/87, a fim de computar no lucro tributável o resultado das subsidiárias no exterior.
No Brasil, o princípio da universalidade é atualmente previsto em nosso ordenamento jurídico no artigo 25 da Lei 9.249/95, veja-se:
“Art. 25 Os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior serão computados na determinação do lucro real das pessoas jurídicas correspondente ao balanço levantado em 31 de dezembro de cada ano”.
Resta autorizada a compensação do imposto incidente no exterior, sobre os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no lucro real, nos termos do artigo 26, caput[3]:
“(…) Art. 26. A pessoa jurídica poderá compensar o imposto de renda incidente, no exterior, sobre os lucros, rendimentos e ganhos de capital computados no lucro real, até o limite do imposto de renda incidente, no Brasil, sobre os referidos lucros, rendimentos ou ganhos de capital.
(…)
§ 2º Para fins de compensação, o documento relativo ao imposto de renda incidente no exterior deverá ser reconhecido pelo respectivo órgão arrecadador e pelo Consulado da Embaixada Brasileira no país em que for devido o imposto” — grifo nosso.
Nota-se, analisando o artigo 26 da Lei 9.249/95, que é permitido, desde que atendidos determinados limites e requisitos, que o Imposto de Renda incidente sobre os lucros, rendimentos e ganhos de capital auferidos no exterior seja compensado com o imposto devido no Brasil na apuração do lucro real.
Verificando o teor do parágrafo 2º retro, a condição para que a pessoa jurídica possa efetuar a compensação é que “o documento relativo ao imposto de renda incidente no exterior seja reconhecido pelo respectivo órgão arrecadador e pelo consulado da Embaixada Brasileira no país em que for devido”.
Ato contínuo, o inciso II do parágrafo 2º, artigo 16, da Lei 9.430/96 dispensa a obrigação da consularização quando a pessoa jurídica comprovar que a legislação do país de origem prevê a incidência do Imposto de Renda na operação. Veja-se:
“II – fica dispensada da obrigação a que se refere o § 2º do art. 26 da Lei n° 9.249, de 26 de dezembro de 1995, quando comprovar que a legislação do país de origem do lucro, rendimento ou ganho de capital prevê a incidência do imposto de renda que houver sido pago, por meio do documento de arrecadação apresentado”.
Neste contexto legal, resta dispensada da obrigação a que se refere o parágrafo 2º do artigo 26 da Lei 9.249/1995, quando se comprovar que a legislação do país estrangeiro prevê o pagamento do imposto por meio de guia de recolhimento por documento próprio de arrecadação. Neste particular, essa dispensa não é usualmente aplicada no Brasil, haja vista que o imposto nas demais jurisdições não costuma ser recolhido via documento arrecadatório — utiliza-se, por exemplo, transferência bancária.
Sobre este tema, é importante pontuar a existência do Decreto 8.660/16, que promulgou a Convenção sobre a Eliminação da Exigência de Documentos Públicos Estrangeiros (Convenção da Apostila), firmada pelo Brasil, em Haia, em 5 de outubro de 1961, que permitiu a substituição do reconhecimento do documento de arrecadação no consulado da embaixada brasileira pelo procedimento de “apostilamento”[4]. Nesta hipótese, frisa-se, resta dispensado o reconhecimento pelo consulado, mas não a apresentação do documento de arrecadação quitado.
Ao se debruçar sobre o tema, a Receita Federal, por meio da Solução de Consulta Cosit 185/18, proferiu entendimento de que “o reconhecimento do documento que comprova o recolhimento ou arrecadação do imposto de renda pago no exterior pelo Consulado da Embaixada Brasileira pode ser substituído pela apostila, de que trata a Convenção…”.
Especificamente acerca do procedimento de apostila, trata-se de um processo de autenticidade de documentos efetuada em cartório. No processo estabelecido pela Convenção da Apostila, passam a ser aceitos, no Brasil, documentos estrangeiros contendo Apostila emitida por um dos Estados-partes, dispensando a necessidade de sua legalização em repartições da rede consular brasileira no exterior[5].
Apesar do efeito vinculante da solução de consulta em comento[6], temos conhecimento de que a Receita entende que o apostilamento seria insuficiente para a compensação do imposto, mantendo a exigência de consularização do documento de arrecadação no país, sob o argumento de que o artigo 26, parágrafo 2º da Lei 9.249/95 não foi alterado e continua em vigor.
No entanto, analisando o tema pela primeira vez, o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) dispensou a necessidade de consularização ao reconhecer a validade[7] da Convenção da Apostila, de forma a permitir, para fins de compensação no Brasil de imposto recolhido no exterior, a apresentação de comprovante de recolhimento com certificação em cartório estrangeiro (Apostila). Na decisão, ainda restou definido que o apostilamento pode ser efetuado no próprio documento ou folha apensa, com o título “Apostila”, em língua local, devidamente traduzido para o português por tradutor juramentado.
Portanto, julgamos acertada a decisão do Carf que aplicou, para fins de dedução no Brasil do Imposto de Renda recolhido no exterior, a desburocratização prevista na Convenção da Apostila, o qual tornou desnecessária a consularização do documento de arrecadação no exterior.
No entanto, é preocupante o fato de o Brasil, apesar de signatário de convenções internacionais com viés de desburocratização, permanecer, na figura de seus agentes públicos, limitando a utilização de tais disposições em total descumprimento aos preceitos dos acordos internacionais firmados pelo Executivo.
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[1] COSTA, Regina Helena. Curso de Direito Tributário. 6ª ed. ver, e atual. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 366.
[2] XAVIER, Alberto. Direito Tributário Internacional do Brasil, 8ª ed. Ver. E atual. – Rio de Janeiro, p. 435.
[3] Este artigo resta normatizado pela Instrução Normativa RFB 213/02, segundo o qual o “tributo pago no exterior, passível de compensação, será proporcional ao montante de lucros, rendimentos, ou ganhos de capital que houverem sido computados no lucro real”. Ademais, “o valor do tributo pago no exterior, a ser compensado, não poderá exceder o montante do imposto de renda e adicional, devidos no Brasil, sobre o valor dos lucros, rendimentos e ganhos de capital incluídos na apuração do lucro real”.
[4] O Brasil também é signatário do “Acordo de Cooperação e Assistência Jurisdicional em Matéria Civil, Comercial, Trabalhista e Administrativa” com os países do Mercosul, Bolívia e Chile (Decreto 6.891/09); o “Acordo de Cooperação em Matéria Civil” com a República Francesa (Decreto 3.598/00); e o “Convênio de Cooperação Judiciária em Matéria Civil”, com o Reino da Espanha (Decreto 166/91).
[5] Em sentido contrário, os documentos com o carimbo da Apostila efetuado no Brasil passam a ter validade imediata em todos os demais Estados-partes da convenção.
[6] Vide artigo 9º da Instrução Normativa RFB 1.396/13.
[7] Processo 10166.723066/201799 – Sessão de julgamento em 23/1/2019.
Artigo originalmente postado no ConJur – 30/05/2019 às 06h17