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O Superior Tribunal de Justiça é a última instância da Justiça para julgar as causas infraconstitucionais, tendo como objetivo, segundo seu sítio eletrônico, “oferecer à sociedade prestação jurisdicional efetiva, assegurando uniformidade à interpretação da legislação federal”.
A Corte figura como guardiã da aplicação da lei federal, atua na preservação do ordenamento vigente e da segurança jurídica.
Atualmente, para julgar matérias de direito público (como controvérsias tributárias), o STJ possui duas Turmas, quais sejam, a 1ª e a 2ª Turmas. Em caso de existência de divergência entre as decisões destas Turmas do STJ ou em casos de julgamento de recursos repetitivos, os processos são julgados pela 1ª Seção do STJ que congrega componentes das 2 Turmas e tem a missão de uniformizar o entendimento dentro da Corte.
Ocorre que o STJ, em algumas situações, não vem observando sua missão constitucional de uniformizar a jurisprudência, gerando um cenário de absoluta insegurança jurídica, com guinadas bruscas de sua própria jurisprudência.
O exemplo mais recente disso foi o julgamento da controvérsia quanto à inclusão das despesas de Capatazia (despesas de manuseio de mercadorias / contêineres nos pontos de desembaraço – em inglês conhecida como “Terminal Handling Charge”) na base de cálculo de tributos devidos na importação.
Em síntese, diversos acordos internacionais (como o GATT) e o próprio regulamento aduaneiro (art. 77, I e II, do Decreto nº 6759/09) definem que integram o valor aduaneiro os gastos relativos à carga, à descarga e ao manuseio, associados ao transporte da mercadoria importada, até a chegada ao porto ou ao aeroporto alfandegado de descarga ou o ponto de fronteira alfandegado.
A Receita Federal, objetivando majorar a base de cálculo dos tributos incidentes na importação, exige a inclusão das despesas com capatazia no valor aduaneiro que servirá de base para esses tributos. Os contribuintes defendem, de forma acertada, que os valores relativos à capatazia (THC) não podem compor o valor aduaneiro, pois se referem a despesas ocorridas após a chegada das mercadorias ao porto/aeroporto, em território brasileiro.
Desde o ano de 2014, a 1ª Turma do STJ já havia enfrentado a matéria, concluindo, por maioria de votos, que o entendimento da Receita Federal “ao permitir (…) que se computem os gastos com descarga da mercadoria no território nacional, no valor aduaneiro, desrespeita os limites impostos pelo Acordo de Valoração Aduaneira e pelo Decreto 6.759/09, tendo em vista que a realização de tais procedimentos de movimentação de mercadorias ocorre apenas após a chegada da embarcação, ou seja, após a sua chegada ao porto alfandegado”.
Na sequência, no ano de 2015, a 2ª Turma do STJ, por unanimidade, proferiu decisão no mesmo sentido, afastando a inclusão das despesas com capatazia (THC) da base de cálculo dos tributos aduaneiros (AgRg no REsp 1434650/CE, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª T, DJe 30/06/2015).
Após as referidas decisões, a matéria foi pacificada na Corte: “as Turmas que compõem a Primeira Seção deste Tribunal Superior firmaram compreensão de que o valores suportados pelos serviços de capatazia não se incluem na base de cálculo do Imposto de Importação” (AgInt no REsp 1495678/CE, Rel. Ministro Og Fernandes, Segunda Turma, DJe 02/05/2017).
Mesmo considerando que a matéria era pacífica nas 2 Turmas, o STJ afetou a matéria para julgamento pela sua 1ª Seção como representativo da controvérsia (Resps 1799306, 1799308 e 1799309).
Para surpresa geral, no dia 11/3/2020, a 1ª Seção do STJ, por maioria, deu provimento ao recurso especial da Fazenda Nacional, entendendo que os serviços de capatazia devem ser incluídos na composição do valor aduaneiro, devendo incidir os tributos aduaneiros (como o Imposto de Importação).
O referido julgamento, que deveria apenas ratificar um entendimento pacífico da Corte, acabou por alterar abruptamente mais de 5 (cinco) anos de julgados favoráveis à tese, após terem sido proferidos dezenas de acórdãos e centenas de decisões monocráticas pela Corte, muitas delas já transitadas em julgado em favor dos contribuintes, além de prejudicar a imagem do país, uma vez que atenta contra os acordos e regulamentos internacionais de que o Brasil é signatário.
No momento em que o direito brasileiro vem criando ferramentas para atribuir maior segurança jurídica, por meio do fortalecimento da jurisprudência das Cortes Superiores (como a sistemática dos recursos repetitivos), o julgamento da 1ª Seção do STJ demonstra que tal não vem ocorrendo na prática do STJ, já que, em um único julgamento com quórum incompleto, toda a jurisprudência da Corte foi revista, sem sequer haver discussão quanto à uniformidade esperada pelo Tribunal.
*Artigo originalmente postado no Jornal O Estado de S. Paulo