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10 razões porque a CIDE-Digital não deve ser aprovada pelo Congresso Nacional
Tramita no Congresso Nacional o PL 2358/2020, do deputado João Maia, que pretende instituir um digital services tax (DST) no Brasil, a exemplo de tributos semelhantes instituídos por alguns países europeus (Itália e França, conforme aponta o projeto). O PL pretende instituir uma Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, chamada de CIDE-Digital pelo projeto, que incidiria sobre a receita bruta de serviços digitais prestados por “grandes empresas de tecnologia” e cujo produto da arrecadação seria destinado ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT).
Seu fato gerador ocorreria no recebimento de receita bruta decorrente de três atividades: (i) publicidade on-line, (ii) disponibilização de plataformas digitais de intermediação de venda de mercadorias e serviços, e (iii) venda de dados de usuários localizados no Brasil.
O projeto, contudo, apresenta uma série de inconsistências, a saber:
1. Contexto diferente dos países europeus: a exploração do mercado europeu a partir de uma presença somente digital no país de destino impossibilita retenções na fonte sobre pagamento oriundo do país consumidor, considerando que a rede de tratados desses países impede retenções e a tributação local só poderia alcança restabelecimentos permanentes físicos. Por isso, alguns países adotaram medidas unilaterais para tributar as receitas das grandes multinacionais de tecnologia pelo valor gerado em seus territórios.
Diversa é a situação do Brasil, país que mais tributa as remessas internacionais (sobretudo por intangíveis). Para PJs, as remessas podem estar sujeitas a IRRF (15%), ISS (2% a 5%), ICMS (discutível), PIS/Cofins (9,25%), IOF (0,38%) e CIDE (10%). Já no caso das PFs, incide o IOF crédito, cuja alíquota (6,38%) é maior do que as da CIDE-Digital (1% a 5%).
2. Inconformidade com requisitos constitucionais das contribuições interventivas: as CIDEs têm dois pressupostos: (i) identificação de um domínio econômico específico para a intervenção estatal; (ii) referibilidade entre o valor pago e a atuação estatal interventiva. No caso da CIDE-Digital, (i) a concepção de um “domínio econômico” digital já foi rechaçada pela OCDE, que concluiu pela impossibilidade de se isolar (“Ring Fence”) a Economia Digital para tributá-la como um campo de incidência destacado. O que ocorre é um fenômeno de digitalização que abrange a economia de forma difusa em seus mais variados aspectos, tais como financeiro (bancos digitais), hospedagem e hotelaria, transporte etc. Não há um “domínio econômico digital” que requeira intervenção.
Já a referibilidade (ii) é à relação entre o valor arrecadado pelo tributo e a atuação estatal que possa beneficiar quem o recolhe. Não existe uma atuação estatal específica na CIDE-Digital, pois o desenvolvimento tecnológico nacional beneficiaria toda a economia de forma indistinta. A referibilidade é mais débil ao notar que o contribuinte pode ser PJ não residente no Brasil e, logo, não beneficiária de um fundo para desenvolvimento da tecnologia no país.
3. Ausência de competência tributária brasileira para tributar receitas de não residentes: o tributo também almeja alcançar receitas de entidades não estabelecidas no Brasil, sem qualquer elemento de conexão com o país, em clara ofensa ao princípio da territorialidade e com exacerbação da competência brasileira de tributar a renda mundial.
4. Indesejada pluritributação da receita: o PL menciona que são contribuintes empresas nacionais ou estrangeiras, e aponta que o tributo incidiria sobre receitas dos contribuintes com as atividades especificadas. Nesse ponto, salta aos olhos a pluritributação da receita das entidades estabelecidas no Brasil, pois, havendo presença física no Brasil, sua receita já seria sujeita a PIS/Cofins, ISS e/ou ICMS. Na dinâmica do PL, uma empresa nacional poderia ter uma receita estatutária regular para fins de PIS/Cofins, ISS e ICMS e outra receita para fins da CIDE-Digital, apurada de forma presumida segundo critérios do PL.
5. Problemáticos fatos geradores
5.1. Publicidade on-line: o PL pretende alcançar as receitas de publicidade on-line para “usuários localizados no Brasil”. A medida é complexa, pela pouca probabilidade de um efetivo controle de anúncios visualizados apenas por usuários no Brasil. Nem mesmo a previsão de proporcionalizar a base de cálculo, de modo que a CIDE-Digital incida apenas sobre a “parcela da receita bruta proporcional às exibições a usuários localizados no Brasil”, no caso de publicidade exibida em outros países, parece de fácil aplicação, considerando as dificuldades para se fazer essa quantificação.
Embora haja a previsão de que se considere localizado no Brasil o usuário que acessar a plataforma digital em dispositivo localizado fisicamente no Brasil, conforme o endereço IP que acessar a plataforma, como aplicar essa métrica à quantificação da base de cálculo do tributo? Cada IP que acesse o anúncio será considerado? Cada acesso do mesmo usuário no mesmo dia? Acessos do mesmo usuário em um intervalo predeterminado de dias? Como computar plataformas de pesquisa que, eventualmente, também acessem esses anúncios via robôs?
5.2. Disponibilização de plataformas digitais: o PL pretende taxar plataformas digitais que permitam que usuários interajam entre si com o objetivo de venda de mercadorias ou de prestação de serviços, desde que um deles esteja no Brasil. Embora pretenda alcançar os marketplaces, ao apontar que a compra e venda e a prestação de serviços devem ocorrer “diretamente” entre os usuários, o PL atingiria quaisquer redes sociais por meio das quais vendedores/prestadores pudessem interagir com compradores/tomadores, mesmo as concluídas externamente à plataforma (checkout externo e mesmo no meio físico).
Como as redes sociais também faturam com publicidade, suas receitas poderiam ser indevidamente tributadas duas vezes: uma pela publicidade, outra pela plataforma.
Além disso, existe a dificuldade em separar as receitas tributáveis, considerando ao menos um usuário no Brasil, e as não tributáveis (usuários no exterior), pelas razões já apontadas e pela dificuldade em determinar “entrar em contato” e “interagir” no mundo digital: basta a visualização? Troca de mensagens? Fechamento de negócios? Em negócios fechados diretamente pelos usuários, como descobri-los e contabilizá-los para a proporcionalização?
5.3. Venda de dados: o PL pretende tributar receitas obtidas com a transmissão dedados de usuários no Brasil coletados durante o uso de uma plataforma digital ou gerados por esses usuários. Além da confusão com as receitas com publicidade dirigida, em sendo uma contribuição que tem a intenção de taxar grandes empresas multinacionais de tecnologia,fica a dúvida se a incidência não atingiria também contribuintes que nada têm com esse universo, pois as vendar de dados também ocorrem de formas simples do ponto de vista tecnológico, como a comercialização de mailing lists por restaurantes/bares ou de informações de compras por farmácias. Nada impediria, portanto, que enormes cadeias internacionais de restaurantes ou de drogarias fossem tributadas por atividades no Brasil…
6. Violação aos princípios da não discriminação e do desenvolvimento nacional: os contribuintes do novo tributo seriam as PJs, domiciliadas no Brasil ou exterior,que auferirem receita bruta em decorrência das atividades apontadas acima e que pertençam a grupo econômico que tenha, no ano-calendário anterior, (i) receita bruta global superior ao igual a R$ 3 bilhões; e (ii) receita bruta superior a R$ 100 milhões no Brasil.
A justificativa do PL aponta que apenas as empresas com presença no exterior seriam tributadas, pois não haveria “sentido em aplicá-la a uma empresa de tecnologia que só atue no Brasil, mesmo que seja grande, já que ela não terá como deslocar o lucro para filiais no exterior”. Isso mostra uma violação ao princípio da não discriminação e traz um enorme desincentivo ao tímido processo de internacionalização de empresas de capital nacional.
7. Violações à isonomia e à livre concorrência: o potencial novo tributo poderia desequilibrar a concorrência entre empresas multinacionais e nacionais, pois as empresas nacionais concorreriam com vantagem ao não serem oneradas com a CIDE-Digital.
8. Incidência sobre operações sujeitas à CIDE-Tecnologia: a CIDE-Tecnologia incide sobre remessas internacionais de transferência de tecnologia e importação de serviços técnicos, com o propósito de “estimular o desenvolvimento tecnológico brasileiro, mediante programas de pesquisa científica e tecnológica cooperativa entre universidades, centros de pesquisa e o setor produtivo”. O produto de sua arrecadação também é destinado ao FNDCT. Nesse contexto, a CIDE-Digital poderia alcançar receitas já tributadas pela CIDE-Tecnologia e ter o produto da arrecadação destinada aos mesmos fins.
9. Problemas operacionais e violação à isonomia: o PL também alcança receitas integralmente auferidas no exterior e sem qualquer trânsito financeiro pelo Brasil. Nesse ponto, como garantir a efetividade de sua arrecadação, considerando que os DST são medidas unilaterais dos países de mercado que contam com reprovação dos países de residência das empresas? Muito provavelmente, não haveria colaboração entre esses países e as autoridades brasileiras, o que inviabilizaria a cobrança em muitos casos.
Assim, as empresas que operam exclusivamente a partir do exterior poderiam ter vantagens com relação a multinacionais brasileiras, com violações à livre concorrência e à isonomia. Isso também poderia levar a um movimento de fuga de multinacionais do território brasileiro.
10. Grandes multinacionais de tecnologia já são tributadas no Brasil: seja pela pesada carga tributária das remessas internacionais, seja por peculiaridades do mercado brasileiro (alto nível de desbancarização, instabilidade sazonal do câmbio,poucas pessoas com cartões internacionais etc.), grandes multinacionais de tecnologia estão constituídas no Brasil como entidades jurídicas brasileiras, razão pela qual já estão sujeitas a toda a pesada carga tributária do país. Logo, nada justifica a criação de mais um tributo para elas.
Por tudo isso, o PL 2358/2020 deve ser rechaçado pelo Congresso Nacional.
*Artigo postado originalmente no Jota.