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Razões pelas quais os portais não devem recolher ICMS nas intermediações
A responsabilidade tributária dos marketplaces pelo pagamento do ICMS devido pelos vendedores tem causado grande repercussão no meio tributário brasileiro. Embora o tema não seja exatamente novo (SP criou algumas regras ainda em 2008), o crescimento exponencial dessas operações e a pluralidade de novas plataformas levou à adoção de recentes iniciativas por outros estados, algumas delas muito menos tímidas do que as paulistas, em um movimento que parece ser uma tendência.
Com efeito, a atividade dos marketplaces pode apresentar uma ampla gama de serviços, desde a intermediação pura e simples entre vendedores e compradores, que fecham negócios por meio de plataformas moldadas para esse tipo de operação, até sofisticadas e complexas atividades que congregam, além da intermediação, o fornecimento de meios de pagamento, crédito, facilidades logísticas e até a estocagem de mercadorias. Em geral, os marketplaces recebem um percentual sobre os valores das vendas nas intermediações, que é pago pelos vendedores e sobre os quais incide o ISS.
Contudo, alguns estados vêm tentando posicioná-los nas condições de solidários e/ou responsáveis pelo recolhimento do ICMS, em hipóteses que variam bastante entre eles. Enquanto SP responsabiliza os marketplaces quando (i) deixem de prestar informações solicitadas pelo fisco sobre as operações ocorridas em suas plataformas ou (ii) em operações que envolvam vendedores em situação cadastral irregular, CE, MT e BA o fazem caso o vendedor não tenha emitido documento fiscal. Já a PB pretende cobrar o imposto quando o marketplace for responsável pelo recebimento e repasse dos pagamentos realizados para a concretização das operações, ao passo que o RJ prevê diversas situações em que a responsabilidade poderá ser aplicada.
Essas regras, contudo, são ilegais e inconstitucionais, além de totalmente inadequadas.
Isso porque, embora a responsabilidade de marketplaces em outros países já exista, os contextos nos quais tais regras foram criadas são totalmente distintos do contexto brasileiro. Primeiramente, a preocupação nos outros países é maior com o eventual não recolhimento do imposto de renda. Especificamente com relação ao IVA, a responsabilidade dos marketplaces se resume aos casos de operações transnacionais B2C com bens digitais, em que o imposto é devido ao país do consumidor e o fornecedor é um não residente.
Aplicar o mesmo raciocínio ao ICMS, portanto, não tem o menor cabimento.
Além disso, é importante lembrar que a Constituição determina que lei complementar deve veicular normas gerais em matéria tributária, inclusive no tocante à sujeição passiva do ICMS. Não cabe, portanto, aos estados instituir tais regras sem o amparo de lei complementar, sobretudo pelo caráter nacional desse imposto e a necessidade de haver uma harmonização das regras entre as vinte e sete unidades federativas.
Entretanto, as leis complementares aplicáveis ao ICMS (Código Tributário Nacional e Lei Complementar 87/96) não aparam as pretensões dos estados. Com efeito, o CTN prevê regras de solidariedade (art. 124) e de responsabilidade de terceiros (arts. 128 a 135), que trazem regimes bastante distintos: enquanto na solidariedade dois ou mais sujeitos são considerados contribuintes e devem recolher tributos próprios, na responsabilidade de terceiros um sujeito com relação com o fato gerador é chamado a adimplir o tributo no lugar do contribuinte original, dependendo de sua relação com ele e com o fato tributado.
No caso da solidariedade, o CTN arrola duas hipóteses: (i) quando dois sujeitos tenham “interesse comum” na situação que constitua o fato gerador da obrigação tributária; e (ii) quando a lei expressamente definir. A primeira hipótese não é aplicável ao caso dos marketplaces, pois, conforme jurisprudência pacífica do STJ, não basta que dois sujeitos tenham interesse econômico comum em uma dada operação, pois deve haver interesse jurídico, ou seja, que ambos estejam no mesmo polo da relação jurídica a ser tributada, como ocorre com os condôminos em relação ao IPTU. Considerando que o marketplace é um prestador de serviços ao vendedor, ao lhe dar suporte em sua atividade comercial, não parece haver interesse jurídico comum na situação, pois ele não pratica operação mercantil.
Já a segunda hipótese (ii), embora aparentemente ampla, deve ser aplicada com parcimônia e apenas nos tributos cujo funcionamento permita a criação de regras de solidariedade, o que definitivamente não é o caso do ICMS, imposto que é não cumulativo, descentralizado e sujeito a distintos regimes de incidência (SIMPLES, alíquotas internas e interestaduais, alíquotas seletivas, reduções de base de cálculo, diferimentos etc.). Nesse contexto, como demandar o imposto de um sujeito que não terá direito aos créditos correspondentes no regime não cumulativo, ou mesmo exigir do marketplace que recolha o imposto diante de tantos regimes distintos a que uma mesma mercadoria pode se sujeitar? Ademais, como evitar que os vendedores não acumulem créditos, já que os débitos seriam satisfeitos por terceiros? Certamente, o regime seria excessivamente complexo, atentatório à não cumulatividade e poderia inviabilizar a atividade dos marketplaces, em evidente natureza confiscatória da liberdade negocial.
Tampouco as regras de responsabilidade de terceiros, previstas nos arts. 134 e 135 do CTN, seriam aplicáveis. Essas hipóteses, conforme art. 128 do CTN, são exaustivas, razão pela qual não pode haver casos de responsabilização distintas nas leis estaduais.
Ocorre que as hipóteses de responsabilização dos marketplaces não se encaixam em nenhuma das hipóteses dos arts. 134 e 135 do CTN. No caso do art. 134, os responsáveis são (i) os pais, pelos tributos devidos pelos filhos menores; (ii) tutores e curadores, pelos tutelados ou curatelados; (iii) administradores de bens de terceiros, pelos devidos pelos terceiros; (iv) inventariante, pelos devidos pelo espólio; (v) síndico e comissário, pelos devidos pela massa falida ou pelo concordatário; (vi) tabeliães, escrivães e demais serventuários, pelos devidos sobre os atos praticados por eles, ou perante eles, em razão do seu ofício; (vii) sócios, no caso de liquidação de sociedade de pessoas. Mesmo nos casos extremos em que as plataformas armazenam e controlam os estoques dos vendedores, não ocorre propriamente a “administração de bens de terceiros” (hipótese “iii”), pois o objeto dessas operações é o suporte amplo às operações de venda, o que não se limita à administração de estoques. Ainda assim, a aplicação do art. 134 depende da comprovada constatação de “impossibilidade de exigência do cumprimento da obrigação principal pelo contribuinte”, o que apenas tem lugar no âmbito de um processo de execução fiscal e mediante autorização judicial, com observância do contraditório e da ampla defesa.
Já o art. 135 responsabiliza sujeitos por obrigações resultantes de atos praticados com excesso de poderes ou infração de lei, contrato social ou estatutos, a saber: (i) as pessoas referidas no art. 134; (ii) os mandatários, prepostos e empregados; (iii) os diretores, gerentes ou representantes de PJs de direito privado. Tampouco aqui há identidade com as hipóteses previstas nas leis estaduais, a não ser que o marketplace, deliberadamente e na função de mandatário dos vendedores, aja com violação à lei ou ao mandato para impossibilitar os vendedores de recolher o ICMS, situação de difícil verificação na realidade.
No mais, falar em aumento de evasão pelo crescimento da operação dos marketplaces é um erro, pois o varejo é e sempre foi muito pulverizado, o que naturalmente dificulta sua fiscalização (para isso existem as regras de substituição tributária para frente). Muito pelo contrário, o fato de as vendas ocorrerem por meio de grandes portais só facilita a fiscalização, pois as informações sobre as operações ficam registradas e à disposição da das autoridades. Aliás, até aqui poderia chegar a responsabilização das plataformas: dever de prestar informações aos fiscos estaduais sobre as operações ocorridas em seu ambiente; caso não as prestem, poderiam sofrer sanções, tais como multas, mas nunca arcar com o recolhimento do ICMS devido pelos vendedores.
A única possibilidade razoável seria uma retenção na fonte no modelo de um IVA, que permita crédito posterior do vendedor pelo tributo retido pelo marketplace, exclusivamente nas hipóteses em que os marketplaces recebem os valores das vendas e os repassam aos vendedores. No entanto, essa hipótese é totalmente incompatível com o modelo atual de tributação brasileira do consumo e apenas funcionaria com um IVA nacional e centralizado, sem prejuízo de uma alteração na legislação complementar.
Por tudo isso, atribuir aos marketplaces a responsabilidade pelo recolhimento do ICMS devido pelos vendedores é totalmente descabido no sistema tributário brasileiro, não merecendo qualquer aplauso iniciativas estaduais nesse sentido.
*Artigo postado originalmente no Jota.