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A lei 9.198/21, do Estado do Rio de Janeiro, gera várias incertezas jurídicas e possivelmente abarrotará o judiciário com mais ações de cunho tributário, sendo provável que a discussão chegue às mãos do STF.
Na última semana (em 9/3/21), foi publicada a lei 9.198/21, do Estado do Rio de Janeiro, que1 passou a prever a necessidade de “complementação” do ICMS-ST pelo substituído, quando as saídas ocorrerem por valor superior à base presumida2, gerando vários questionamentos e uma grande insegurança jurídica que, provavelmente, levará sua análise ao Judiciário através de enorme fluxo de demandas tributárias.
Em que pese esta exigência fiscal, denominada “complemento do ICMS-ST”, seja nova para os contribuintes fluminenses, esta possui previsão na legislação de diversos outros Estados (p. ex. São Paulo, Minas Gerais, Paraná, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Goiás, Pernambuco) e já vem sendo exigida dos contribuintes há algum tempo, ao arrepio na Lei Kandir (LC 87/96) e da Constituição Federal.
A implementação dessa “nova” exigência decorre da interpretação “às avessas” realizada pelos Estados quanto ao racional estabelecido pelo STF no julgamento do RE 593.849/MG (tema 201), entendendo que, ao permitir a restituição do ICMS-ST quando a saída for inferior a base presumida, a Corte Suprema teria, por outro ângulo, viabilizado a exigência do imposto quando a situação for inversa, como consta na mensagem 25/18 do projeto que gerou a lei estadual 9.198/21 “A decisão proferida no RE 593.849/MG evidencia a necessidade de que o imposto devido por meio do regime de substituição tributária corresponda à realidade do processo econômico, de forma a eliminar a eventual diferença entre a base de cálculo presumida daquela efetivamente realizada.”.
Tal entendimento comporta uma releitura obviamente enviesada e equivocada do precedente, considerando que o próprio STF se debruçou sobre a suposta necessidade de ampliação da tese fixada ao tema 201 para abarcar a possibilidade de complemento do ICMS-ST, ao julgar os embargos de declaração opostos pelo Estado de Minas Gerais contra o resultado do julgamento, e consignar que “não prospera a alegação de omissão da decisão recorrida, porquanto se trata de inovação processual posterior ao julgamento, não requerida ou aventada no curso deste processo“.
Tanto é assim, que restou claro no voto do min. Rel. Edson Fachin (relator do precedente que deu origem ao tema 201) que, para hipótese diversa a tratada naqueles autos (restituição), permanece incólume o entendimento proferido na ADIn 1.851/AL, que reconheceu a definitividade da base de cálculo presumida.
E como se não bastasse e já anteriormente mencionado, a exigência em questão esbarra na ausência de previsão na Constituição Federal e na lei complementar 87/96, sendo especialmente agravada por se tratar de atribuição de responsabilidade tributária pelo “complemento” aos substitutos, o que é matéria afetada à previsão por lei complementar, conforme previsão nos arts. 146, III, a e 155, § 2, XII, ‘a’ e ‘d’, da Carta Magna.
A respeito da ausência de previsão na Constituição Federal, é importante registrar que o art. 150, § 7°, da CF/88 foi incluído na Seção que trata justamente sobre as “limitações sobre o poder de tributar” (Seção II), como forma justa de mitigar os efeitos negativos da substituição tributária aos contribuintes.
Assim, é absolutamente natural que eventuais distorções nesse instrumento de tributação – imposto pela Fazenda aos contribuintes como forma de facilitar o seu papel de fiscalização – não sejam suportadas pelos contribuintes e sim pela Fazenda Pública.
Cabe ainda frisar que, um ponto comum na legislação dos Estados é a previsão de que este “complemento de ICMS-ST” deverá ser compensado com eventuais créditos em favor dos contribuintes (substituídos), decorrentes de saídas por valores inferiores à base presumida, servindo como um verdadeiro “redutor” dos valores a serem restituídos pelo Estado.
Neste aspecto, a legislação fluminense foi ainda mais ousada, impondo a exigência do complemento de forma retroativa, ao estabelecer que o “complemento de ICMS-ST” deve ser compensado não só com créditos passíveis de restituição em razão “de antecipações de pagamento do fato gerador presumido realizadas após 24 de outubro de 2016” (data de publicação da ata de julgamento do tema 201), como também com aqueles créditos apurados no passado, sem limitação temporal, em razão de decisões judiciais em ações obre o tema.
Ora, a assim dispor, o Estado do Rio de Janeiro não só impõe a exigência de tributo sem lei que o suporte, como ainda delega aos substituídos tributários o dever de fiscalização que é inerente e exclusivo à Administração Pública, ao condicionar a restituição à comprovação, pelo substituído, do pagamento do ICMS-ST pelo substituto, quando isso é seu dever e em nada afeta o direito à restituição, já que o substituído é quem suporta o ônus pelo pagamento do tributo indevido.
Assim, se o substituto recolheu ou não o ICMS-ST, isso não pode ser fator condicionante à restituição, já que o ônus financeiro pelo pagamento do tributo já foi suportado pelo substituído, quando da aquisição das mercadorias no regime de substituição tributária.
Naturalmente, a tentativa de exigência do “complemento do ICMS-ST” de forma retroativa encontra óbice não só nos princípios da irretroatividade e da anterioridade, violando diretamente os arts. 150, III, alíneas “a”, “b” e “c” da Constituição Federal e arts. 105 e 106 do CTN, como ainda viola a própria legalidade tributária.
Mais uma vez, verifica-se uma tentativa agressiva do Estado do Rio de Janeiro de ignorar os princípios constitucionais reguladores do poder de tributar, impondo a exigência fiscal de forma arbitrário e inconstitucional.
Diante desse cenário, é possível defender, perante o Poder Judiciário, a ilegalidade e inconstitucionalidade das legislações estaduais que visam a exigência do “complemento do ICMS-ST”, seja pela ausência de previsão na Constituição Federal e na Lei Kandir e, principalmente, pela impossibilidade de atingir fatos geradores anteriores à sua produção de efeitos.
A lei Fluminense 9.198/21 gera várias incertezas jurídicas e possivelmente abarrotará o judiciário com mais ações de cunho tributário, sendo provável que a discussão chegue às mãos do STF em razão de seus contornos constitucionais, somando-se aos inúmeros questionamentos e dúvidas que permeiam a vida dos contribuintes.
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1 Inclusão do art. 28-A à lei 2.657/96 (Lei Geral do ICMS do Estado)
2 A Lei prevê também a restituição do ICMS-ST nos casos em que a saída da mercadoria se concretizar por valor inferior à base presumida.
*Artigo originalmente postado no Migalhas.