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Victor Bosa Paulim Metamorfose ambulante: a necessária superação da velha opinião formada sobre a resolução dos contratos de compra e venda de imóveis 31 de janeiro de 2024

Em 1973, Raul Seixas lançou “Metamorfose Ambulante”, ressoando a importância de mudar de opinião. No contexto jurídico, a antiga visão do STJ sobre rescisão de contratos imobiliários evolui, destacando a desnecessidade de prévia manifestação judicial.

No mês de julho de 1973, em seu primeiro álbum solo, Raul Seixas lançou a música “Metamorfose Ambulante”, que acabou sendo um dos maiores sucessos da carreira do cantor e se enraizou na cultura brasileira. A mensagem da obra é clara: é melhor saber o momento de mudar de convicção “do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo”.

Quando o tema é a resolução dos contratos de compra e venda de imóvel, a “velha opinião” vem do STJ, que, durante muito tempo, reverberou de maneira uníssona o entendimento de que “é imprescindível a prévia manifestação judicial na hipótese de rescisão de compromisso de compra e venda de imóvel para que seja consumada a resolução do contrato, ainda que existente cláusula resolutória expressa”¹.

A posição adotada pelo Tribunal Superior desprestigia a regra do art. 474 do Código Civil² e, na prática, prejudica diretamente a eficácia da cláusula resolutiva para os vendedores de imóveis. Afinal, diante do inadimplemento do comprador, aqueles tornam-se dependentes da obtenção de manifestação judicial definitiva (leia-se, transitada em julgado) para possibilitar a retomada da posse de seu imóvel.

Além de favorecer o comprador inadimplente – que é “autorizado” a permanecer na posse do imóvel até o julgamento definitivo da ação de resolução do contrato -, o entendimento potencializa os prejuízos do vendedor, que não recebe o pagamento pelo preço do contrato e ainda é impedido de retomar a posse de seu imóvel de maneira provisória.

Verificando a incoerência desse posicionamento, em agosto de 2021, a Quarta Turma do STJ alterou o seu entendimento sobre o tema de maneira inédita. Naquela ocasião, no julgamento do REsp 1789863/MS, reconheceu que “inexiste óbice para a aplicação de cláusula resolutiva expressa em contratos de compromisso de compra e venda”, visto que “decorrido o prazo sem a purgação da mora, abre-se ao compromissário vendedor a faculdade de exercer o direito potestativo concedido pela cláusula resolutiva expressa para a resolução da relação jurídica extrajudicialmente.”³

Desde então, a despeito de precedentes singulares seguindo o novo posicionamento da Quarta Turma do STJ, a questão continuou inalterada na jurisprudência majoritária dos Tribunais Estaduais, que permaneceram replicando a “velha opinião” firmada sobre o tema.

Considerando este descompasso entre a jurisprudência nacional e a realidade dos negócios jurídicos, desde o ano de 2015, é possível identificar verdadeiro movimento legislativo visando ratificar a validade das cláusulas resolutivas e possibilitar, na prática, a resolução dos contratos de compra e venda independentemente de qualquer manifestação judicial.

Inicialmente, com a lei 13.097/15 , foram alteradas as regras específicas aplicáveis aos contratos de imóveis não loteados, pela qual foi expressamente estabelecido que “a resolução por inadimplemento do promissário comprador se operará de pleno direito”. Nesses casos, apenas é exigida a notificação prévia do comprador em mora, a ser realizada de maneira extrajudicial por meio do Registro de Títulos e Documentos.

Posteriormente, em junho de 2022, foi promulgada a lei 14.382/22, que alterou a Lei de Registros Públicos (lei 6.015/73) para trazer a possibilidade da resolução dos compromissos de compra e venda exclusivamente por meio do Registro de Imóveis. Pelo novo procedimento, o comprador deve ser intimado pelo próprio Cartório, que, após a ausência de pagamento, poderá concretizar o cancelamento do registro do compromisso de compra e venda na matrícula do imóvel, no interesse do vendedor, de maneira completamente extrajudicial .

Inclusive, não pode passar despercebida a inclusão do art. 251-A, § 6º, na Lei de Registros Públicos, que estabeleceu que a certidão de cancelamento do registro emitida pelo Registro de Imóveis será prova determinante para a concessão da decisão liminar de reintegração de posse . Afinal, o dispositivo escancara o recado ao Poder Judiciário: a resolução dos contratos de compra e venda não depende de prévia manifestação judicial.

Mais recentemente, em outubro de 2023, o Marco Legal das Garantias (lei 14.711/23), que foi promulgado com o claro objetivo de desjudicializar o maior número de procedimentos possíveis, garantiu aos Tabeliães de Notas o poder de certificar a ocorrência ou frustação de condições negociais, como é que ocorre com a cláusula resolutiva expressa.

Ou seja, com o Marco Legal das Garantias, independentemente da espécie do contrato de compra e venda, a interpelação do comprador em mora e a consumação da cláusula resolutiva poderão ser realizadas de maneira completamente extrajudicial. Nesse caso, com a certificação da inadimplência do comprador, o Tabelião expedirá ata notarial com força de título capaz de ensejar registro na matrícula do imóvel (em procedimento muito parecido com aquele previsto pela lei 14.382/22).

Nesse cenário, no apagar das luzes de 2023, aderindo à posição da Quarta Turma pela primeira vez, a Terceira Turma do STJ publicou acórdão ratificando o entendimento de que, tratando de contratos de compra e venda, “não se vislumbra razão para exigir manifestação judicial para a rescisão de contrato de compra e venda de imóvel que contenha cláusula resolutiva expressa”¹⁰.

É verdade que a Terceira Turma incluiu ressalvas neste entendimento, expondo que este apenas poderia ser aplicado desde que “não haja adimplemento substancial, desrespeito às normas consumeristas, aplicação de princípios regentes de contratos imobiliários com viés eminentemente público de financiamento habitacional, ou outra peculiaridade que demande um tratado diferenciado”. Porém, essas condicionantes são exceções e não devem prejudicar o exercício do direito de resolver os contratos pelos vendedores.

Afinal, se for o caso, deve ser do interesse do comprador inadimplente buscar a tutela do Poder Judiciário para demonstrar que a resolução extrajudicial do contrato não é válida por conta de alguma especificidade – e não o contrário, exigindo que o vendedor tenha que ajuizar ação para validar o exercício de direito que lhe é potestativo.

Portanto, atualmente, não há dúvidas: a legislação brasileira (de maneira genérica e específica) e o entendimento das duas Turmas de Direito Privado do STJ admitem a resolução extrajudicial de qualquer espécie de contrato de compra e venda de imóveis que tenha cláusula resolutiva, sendo dispensada para tanto qualquer manifestação judicial prévia.

Em que pese o movimento legislativo e a alteração de entendimento pelo STJ, o novo posicionamento permanece sendo ignorado pelos Tribunais Estaduais, que continuam exigindo a manifestação judicial como condicionante para a resolução dos contratos de compra e venda de imóveis. Como exemplo, podemos citar precedentes de diversos Tribunais do país, como o TJ/SP¹¹, TJ/MG¹², TJ/DF¹³, TJ/RJ¹⁴ e TJ/PR¹⁵, todos envolvendo acórdãos julgados e publicados no segundo semestre de 2023.

A fim de prestigiar a eficácia da cláusula resolutiva, a vontade das Partes e as novas alterações legislativas, chegou o momento de a jurisprudência nacional entender que é melhor ser uma “metamorfose ambulante” do que ter aquela velha opinião formada sobre tudo e, sem qualquer vergonha, como ensinou Raul Seixas há mais de 50 anos, “desdizer aquilo tudo que eu lhe disse antes”.

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¹ AgInt no AREsp n. 1.278.577/SP, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 18/9/2018, DJe de 21/9/2018.

² Art. 474. A cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial.

³  REsp n. 1.789.863/MS, relator Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 10/8/2021, DJe de 4/10/2021.

Legislação que alterou dispositivos do Decreto-Lei nº 745/69.

 Art. 62 da Lei nº 13.097, de 19 de janeiro de 2015.

 Conforme nova redação do art. 251-A, § 5º.

§ 6º A certidão do cancelamento do registro do compromisso de compra e venda reputa-se como prova relevante ou determinante para concessão da medida liminar de reintegração de posse.

Art. 7º-A Aos tabeliães de notas também compete, sem exclusividade, entre outras atividades: I – certificar o implemento ou a frustração de condições e outros elementos negociais, respeitada a competência própria dos tabeliães de protesto;

 Art. 7º-A (…) § 3º A mediação e a conciliação extrajudicial serão remuneradas na forma estabelecida em convênio, nos termos dos §§ 5º e 7º do art. 7º desta Lei, ou, na falta ou na inaplicabilidade do convênio, pela tabela de emolumentos estadual aplicável para escrituras públicas com valor econômico.

¹⁰ REsp n. 2.044.407/SC, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 21/11/2023, DJe de 23/11/2023.

¹¹ TJ-SP – Agravo de Instrumento: 2265234-08.2023.8.26.0000, Data de Julgamento: 29/11/2023, 12ª Câmara de Direito Privado.

¹² TJ-MG – Agravo de Instrumento: 1896598-26.2023.8.13.0000, Data de Julgamento: 15/12/2023, 15ª Câmara Cível.

¹³ TJ-DF – 0720141-27.2023.8.07.0000, 2ª Turma Cível, Data de Julgamento: 11/10/2023.

¹⁴ TJ-RJ – 0009114-59.2017.8.19.0002, 20ª Câmara de Direito Privado, Data de Julgamento: 09/11/2023.

¹⁵ TJPR – 19ª Câmara Cível – 0025169-65.2023.8.16.0000 – Data de Julgamento: 18/07/2023.

 

*Artigo publicado originalmente no Migalhas.