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Flávio Augusto Dumont Prado & Alexei Macorin Vivan. O equívoco da Receita Federal em tributar energia furtada 13 de junho de 2025

As perdas não técnicas representaram 15,7% da energia de baixa tensão injetada no sistema.

É causado pela atividade de distribuição de energia elétrica a ocorrência de perdas técnicas e não técnicas: as técnicas decorrem da própria rede; as não técnicas, majoritariamente, de ilícitos como furtos e ligações clandestinas, frequentes em áreas vulneráveis e desassistidas pelo Estado [1] .

Embora ambas sejam inerentes à atividade e, portanto, passíveis de dedução da base de cálculo do IRPJ/CSLL, por configurarem custo de transações (arts. 303 e 311 do RIR/18 e art. 46 da Lei nº 4.506/64), a Receita Federal do Brasil (RFB) tem negada a dedutibilidade das perdas não técnicas, com a respectiva autuação da parcela deduzida.

Para a RFB, essas despesas seriam dedutíveis apenas comprovadas ou furtadas mediante reclamação ou representação criminal, com identificação individualizada dos responsáveis, com base no art. 47, §3º, da Lei nº 4.506/64, Parecer Normativo CST nº 50/73 e Solução de Consulta Cosit nº 3/17, o que tem ensejado autuações fiscais bilionárias no setor [2] .

Essa posição parte da falsa consiste em que as perdas não seriam técnicas gerenciáveis pelas distribuidoras com maior “diligência”, revelando o desconhecimento da realidade das concessões ou solicitadas, ingenuamente, como pretexto arrecadação.

Em 2023, as perdas não técnicas representaram 15,7% da energia de baixa tensão injetada no sistema. Nas cinco distribuidoras mais afetadas — Amazonas Energia, CEA Equatorial, Light, Enel RJ e Equatorial PA — a média chegou a 64% [3] .

O volume dessas perdas supera o consumo anual do setor residencial da Região Sul [4] , evidenciando que não se trata de desvios residuais, mas de prática recorrente e sistêmica.

Esse cenário resulta da prática criminosa agravada pela missão estatal. Parte do prejuízo é repassada ao consumidor, outra absorvida pelas distribuidoras [5], afetando a sustentabilidade do serviço. Exigir a identificação dos criminosos equivale à importância da atribuição que as distribuidoras não possuem. Elas sofreram dupla derrota: a perda com o furto e a tributação sobre o que não recebeu.

Não cabe aos distribuidores identificarem os responsáveis pelas perdas, conforme exige a RFB. A comunicação das ocorrências à ANEEL, responsável por este controle, mostra-se suficiente, sendo indevida a atribuição de função investigativa a agentes privados.

A RFB ignora a realidade e exige às empresas um ônus probatório que só faria sentido em contextos próximos ao ideal. Exigir controle individualizado ou purificação de autoria usurpando funções estatais exclusivas.

Ao negar a dedutibilidade, a RFB contrariamente à ANEEL, que permite tais perdas como não gerenciáveis, sobretudo em áreas com alta criminalidade e restrições de acesso até mesmo à polícia. Há um claro descompasso entre os marcos regulatórios e tributários: a ANEEL trata essas perdas como “complexidades socioeconômicas” [6] , enquanto a RFB vê como evitáveis, impondo às distribuidoras um ônus desproporcional e inexequível.

Desconsiderar um custo operacional reconhecido pela agência reguladora contrária à lógica do lucro real – direcionado à tributação da capacidade econômica efetiva – e comprometer a neutralidade tributária, afetando a orientação de uma atividade essencial.

Como bem reconhecido no Acórdão nº 1101-001.349 do CARF [7], negar a dedutibilidade com base na suposta evitabilidade três ignora aspectos centrais:

  1. A realidade operacional das distribuidoras, com ligações clandestinas e dificuldade de fiscalização em áreas de risco;
  2. A obrigação legal de fornecimento universal, inclusive em locais economicamente inviáveis e de alto risco, sem contrapartida estatal eficaz;
  3. O marco regulatório da ANEEL, que permite regular tais perdas como custo, incorporando-as no cálculo tarifário.

Mais descabida é a alegação de que as distribuidoras estariam na “zona de conforto”. Confortável seria receber por toda a energia fornecida e tributar o lucro. Na realidade, perdem 66% da receita potencial com o furto, mesmo com a dedução admitida. A interpretação da RFB não se sustenta nem sob a lógica matemática.

Perdas tributárias inevitáveis frente à capacidade contributiva, comprometem a segurança jurídica e colocam em risco a continuidade do serviço público essencial. Reconhecer a dedutibilidade dessas perdas não é benefício: é dever de coerência com os princípios do sistema tributário.

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[1] Agência Nacional de Energia Elétrica (Brasil). Bibliografia Temática: perdas não técnicas de energia elétrica / Agência Nacional de Energia Elétrica, Núcleo de Biblioteca e Arquivo. Brasília: ANEEL: NBA, jun. 2024.

[2] Ac. 1202-001.527, 1ª Seção/2ª Câmara/2ª Turma ordinária, Rel. André Luís Ulrich Pinto, j. 28/01/25.

[3] Disponível em: https://portalrelatorios.aneel.gov.br/luznatarifa/perdasenergias# !

[4] Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/aneel-divulga-relatorio-sobre-perdas-de-energia-eletrica-na-distribuicao.

[5] Agência Nacional de Energia Elétrica (Brasil). Bibliografia Temática: perdas não técnicas de energia elétrica / Agência Nacional de Energia Elétrica, Núcleo de Biblioteca e Arquivo. Brasília: ANEEL: NBA, jun. 2024.

[6] Disponível em: https://www.gov.br/aneel/pt-br/assuntos/noticias/2024/aneel-divulga-relatorio-sobre-perdas-de-energia-eletrica-na-distribuicao.

[7] Ac. 1101-001.349, 1ª Seção/1ª Câmara/1ª Turma ordinária, Rel. Itamar Artur Magalhães Alves Ruga, j. 16/07/24.

 

Artigo publicado originalmente no JOTA.