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O STF, ao julgar a ADC nº 49, definiu que é inconstitucional a cobrança de ICMS na transferência de mercadorias entre estabelecimentos da mesma empresa. Após tal julgamento, foram opostos embargos de declaração para que a Suprema Corte esclarecesse alguns pontos.
Ao analisar os embargos de declaração, o STF definiu que (1) os contribuintes podem manter os créditos de ICMS sobre suas aquisições quando fizerem operações de transferência; (2) a decisão da ADC nº 49 somente surtirá efeitos a partir de 2024; e (3) se até janeiro de 2024 os estados não tivessem definido a forma pela qual os créditos de ICMS serão transferidos entre estabelecimentos do mesmo titular, os contribuintes poderiam transferir tais créditos.
Com o julgamento dos embargos de declaração, deveria estar tudo resolvido e esclarecido em relação ao tema. Ocorre que a discussão só começou.
Para regulamentar a forma pela qual os créditos de ICMS podem ser transferidos, o CONFAZ aprovou o Convênio ICMS 178/23. Paralelamente, houve a aprovação da Lei Complementar nº 204/23. O grande problema é que o Convênio e a Lei Complementar possuem disposições conflitantes.
Por conta disso, algumas discussões já surgiram entre Fisco e contribuintes. A principal delas diz respeito à inconstitucionalidade da obrigatoriedade da transferência dos créditos prevista no Convênio 178/23.
O STF, ao julgar a ADC 49, definiu como direito dos contribuintes a manutenção e o aproveitamento dos créditos (não se trata de obrigação).
Isso fica evidente no voto do Ministro Dias Toffoli, quando assevera que o STF deveria reconhecer que os sujeitos passivos teriam o direito de transferir tais créditos caso não fosse publicada lei complementar. Na mesma linha foi o entendimento do Ministro Barroso, anotando que para a efetividade da não cumulatividade é necessário que “se faculte aos sujeitos passivos a transferência de créditos entre os estabelecimentos de mesmo titular”.
A não obrigatoriedade da transferência dos créditos resulta na conclusão de que ao contribuinte é permitido transferir o montante de crédito que lhe convier na movimentação de mercadorias entre filiais, sendo esta a interpretação que mais se adequa ao decidido pelo STF no julgamento da ADC 49.
Afinal, a transferência obrigatória dos créditos pode equivaler a exigir o ICMS ou impossibilitar que o crédito da entrada seja transferido integralmente. Para tornar isso mais concreto, pensemos nos seguintes exemplos:
- Aquisição de mercadoria em operação na qual o ICMS pago foi de 7%. A transferência será calculada sobre o valor da entrada mais recente, aplicando-se a alíquota interestadual de 12%. Nesse caso, os créditos da entrada (7%) serão com certeza inferiores ao “débito” da transferência (12%), o que fará com que a empresa tenha que pagar ICMS ou reduzir saldo credor em razão da transferência. Tal situação confronta diretamente com a ADC 49, pois essa sistemática equivale a exigir o ICMS em razão da transferência.
- Aquisição de mercadoria em operação na qual o ICMS foi de 18%. A transferência será calculada sobre o valor da entrada mais recente, aplicando-se a alíquota interestadual de 12%. Nesse caso, o crédito da entrada (18%) é superior ao “débito” da transferência (12%) e o contribuinte não poderá transferir todo o crédito da entrada. Essa situação também vai contra o decidido na ADC 49, pois limita o direito do contribuinte de transferir todo o crédito da entrada.
Na prática, a sistemática prevista pelo Convênio 178 mantém tudo como era antes da decisão da ADC 49, já que permite a “tributação” da transferência de mercadorias se a alíquota dos créditos na entrada for menor do que a interestadual utilizada para cálculo do crédito a ser transferido. Isso acaba por gerar um valor a pagar na apuração do ICMS, com base em um fato (transferência de mercadorias) que não é hipótese de incidência do imposto.
Como visto, a regra convenial também pode resultar na impossibilidade de que o crédito da entrada seja transferido integralmente ao estabelecimento recebedor das mercadorias, nos casos em que a alíquota na entrada for maior do que a interestadual utilizada para cálculo do crédito a ser transferido.
Ou seja, o que está mais alinhado com a decisão do STF na ADC 49 é garantir a transferência dos créditos da entrada (fazer com que o crédito acompanhe a mercadoria) e não estabelecer um valor de ICMS para a transferência que esteja desvinculado com o crédito da entrada.
Já se tem decisões judiciais garantindo a faculdade dos contribuintes de transferir os créditos e ICMS. A título de exemplo, citamos o entendimento firmado pela 13ª Câmara de Direito Público do TJ/SP (AI 2038251-19.2024.8.26.0000 ).
Também haverá embates entre Fisco e contribuintes no que diz respeito à exigência de ICMS-ST e DIFAL nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa.
No que diz respeito ao ICMS-ST, houve a aprovação do Convênio CONFAZ 225/23 que determinou que o valor do crédito transferido será abatido do cálculo do imposto devido na sistemática da substituição tributária.
Contudo, é inconstitucional a exigência de ICMS-ST nas transferências entre estabelecimentos do mesmo contribuinte, porque: (a) nas transferências não ocorre o fato gerador do ICMS, como definido pelo STF no julgamento da ADC 49; e (b) a substituição tributária visa antecipar o pagamento do imposto devido na etapa seguinte e, nesse caso, não haverá “próxima etapa”, já que a transferência não é considerada uma etapa de comercialização.
Sobre o DIFAL, também é inconstitucional a sua exigência nas transferências, afinal, em não havendo operação tributável pelo ICMS nas transferências, conforme entendimento do STF, não haverá diferença de imposto entre a alíquota interna e a interestadual.
Por fim, no que diz respeito aos benefícios fiscais, o Convênio 178/23 regulamentou que a transferência dos créditos de ICMS não implica na revogação automática dos benefícios fiscais concedidos. Em razão disso, nos Estados que estão adotando a redação do Convênio, há maior probabilidade de manutenção dos benefícios fiscais que eventualmente sejam calculados sobre as operações de transferência. Já a Lei Complementar 204/23 se manteve silente quanto a esse assunto.
É possível argumentar, independentemente das previsões do Convênio ou da Lei Complementar, que os benefícios fiscais de ICMS devem ser mantidos em razão das transferências entre estabelecimentos da mesma empresa. Isso porque os contribuintes já vêm aproveitando tais benefícios há muitos anos e têm a legítima expectativa de continuar aproveitando-os. Somente uma modificação na legislação que rege os benefícios fiscais é que poderia levar à extinção destes. Reforça esse entendimento o fato de que os Ministros do STF, ao julgarem a ADC 49, utilizaram como fundamento para modular os efeitos da decisão a necessidade de se assegurar a continuidade dos incentivos, em nome da segurança jurídica, proteção da confiança legítima e da boa-fé.
De toda maneira, é importante analisar a natureza de cada benefício fiscal para concluir se ele pode continuar sendo aproveitado em razão das saídas em transferência.
É importante destacar, ainda, que alguns estados estão internalizando em suas legislações o texto do Convênio 178/23. Outros estão adotando o texto da Lei Complementar 204/23. E, ainda, há estados que estão internalizando as duas normas que, como visto, são incompatíveis em muitos aspectos.
Por isso, é importante que os gestores tributários avaliem os riscos e as estratégias que serão adotadas analisando as legislações dos estados de origem e destino das mercadorias, já que essas legislações podem ser conflitantes.
Diante de tudo isso, fica claro que a discussão envolvendo o ICMS nas transferências entre estabelecimentos da mesma empresa não acabou, só está começando.
* Artigo publicado originalmente no Estadão.