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Não parece ser o momento para a instituição do conceito de EPV nos países latino-americanos
“A América Latina é pródiga em importar coisas das quais não precisa”. Essa foi a conclusão do painel sobre a experiência latino-americana frente ao estabelecimento permanente virtual no último Encontro Regional Latino-americano da International Fiscal Association (IFA), ocorrido em maio de 2019, no Panamá. Na ocasião, especialistas de sete nações da região debateram a necessidade ou não de os países latino-americanos adotarem o que se convencionou chamar de “estabelecimento permanente virtual”, instituto que tem por finalidade identificar a presença digital relevante de uma empresa residente em um país em outro, para fins de tributação do valor gerado por ela no segundo.
Há uma grande discussão sobre a tributação da economia digital em âmbito mundial. Não se trata do debate interno que temos no Brasil acerca da incidência de ICMS ou ISS (ou de nenhum tributo indireto) sobre algumas operações que ocorrem no mundo digital, mas de uma discussão sobre a tributação direta da renda mundial, cuja preocupação é a alocação de resultados nas jurisdições em que as empresas da economia digital geram valor mesmo sem presença física.
Basicamente, a partir do protagonismo cada vez maior da digitalização da economia, muitos países perceberam que parte da riqueza gerada em seu território não era tributada, na medida em que percebida em função de operações cujas remessas internacionais não estão sujeitas ao pagamento de imposto de renda na fonte, ou ainda pelo simples fato de não gerarem necessariamente um fluxo financeiro de pagamento.
Na segunda hipótese, está o típico caso de usuários dos sites que contemplam acessos gratuitos, tais como Facebook e Instagram, os quais agregam valor a essas empresas sem que qualquer pagamento seja realizado pelo usuário. Tal geração de valor pelos usuários para essas plataformas ocorre de forma pulverizada em vários países (de residência dos usuários) sem que haja pagamento de imposto de renda localmente.
É justamente para abarcar essas situações que existem propostas de criação de uma espécie de Estabelecimento Permanente Virtual (EPV), cujos fundamentos são a revisão do conceito de fonte, com a superação dos critérios baseados exclusivamente na presença física das empresas em outros países, e uma nova dimensão da teoria do benefício, de modo a reconhecer que uma empresa não residente pode se beneficiar da infraestrutura existente em um dado país, onde os usuários acessam os diversos serviços oferecidos online, remotamente, além de proteção jurídica, proteção de marcas etc. Por conta desse benefício obtido, as empresas também deveriam contribuir com as despesas do país, por meio do pagamento de tributos.
Para tanto, tais propostas sugerem novos parâmetros para a identificação do estabelecimento permanente de uma empresa não residente em um dado país, baseados na quantidade de acessos e/ou usuários dos serviços digitais, tempo de acesso e renda gerada com a atividade local, entre outros. Uma vez reconhecida a presença digital relevante por meio da identificação de um “estabelecimento permanente digital”, parte da renda da empresa não residente seria tributada no país em que detectada essa presença digital relevante.
Contudo, se essa solução está ajustada aos interesses de alguns países, no caso latino-americano não há consenso quanto à sua utilidade. Primeiramente, a experiência latino-americana com a aplicação do conceito clássico de Estabelecimento Permanente (EP), baseado unicamente em critérios físicos, tem-se demonstrado bastante escassa e, quando aplicada, demasiadamente problemática, sobretudo pela dificuldade em se aplicar os critérios estabelecidos nas legislações internas ou nos acordos para evitar a dupla tributação. Essa dificuldade seria amplificada no caso do EPV, já que os critérios sugeridos são muito mais complexos do que os padronizados para a identificação do EP tradicional.
Outro ponto que enfraquece a adoção do EPV na região é a forte tradição local de se tributar as remessas internacionais com o imposto de renda retido na fonte, o que, por si, já aloca boa parte da renda auferida pelos não residentes nos países de fonte quando realizadas as remessas em pagamento. Nesse ponto, a adoção do EPV poderia não trazer um aumento significativo na arrecadação, ao menos considerando as operações B2B, cujas remessas internacionais dificilmente ficam à margem das retenções.
Além disso, alguns países da região já aderiram a modelos de “digital services tax” (DST), cujo objetivo é justamente alcançar as operações envolvendo serviços digitais prestados de maneira transfronteiriça. No Brasil, já temos a exigência de contribuição de intervenção no domínio econômico (CIDE) própria, incidente sobre a importação de tecnologia e de serviços técnicos, impondo carga tributária adicional sobre as remessas internacionais relacionadas à economia digital (de maneira similar ao Equalization Levy existente na Índia), e tramita no Congresso Nacional o projeto de lei nº 2.358/2020, que pretende instituir uma espécie de DST no país, a exemplo do que fizeram França e Itália em meio às discussões no âmbito da OCDE, sob a forma de nova CIDE, proposta que apresenta uma série de inconsistências.
Importante destacar que a criação de um EPV demandaria ação multilateral dos países, o que seria bastante difícil diante dos distintos interesses envolvendo a matéria. Outro ponto relevante para o debate é a altíssima complexidade de alguns sistemas tributários, como é o caso do brasileiro, sobretudo no tocante à tributação sobre o consumo.
Sem dúvida, agregar ao sistema brasileiro o sofisticadíssimo conceito de EPV traria ainda mais encargos ao dia-a-dia das empresas e cidadãos, o que vem na contramão do que a sociedade brasileira espera em termos de simplificação da tributação no país, com todos os esforços que estão sendo feitos para uma reforma tributária nesse sentido.
Por tudo isso, não parece ser o momento para a instituição do conceito de EPV nos países latino-americanos, especialmente no Brasil.
*Artigo postado originalmente no Jota.