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A dificuldade de diminuir o rol de produtos e serviços que terão tratamento especial na Reforma Tributária foi o principal foco das críticas de especialistas e entidades empresariais ouvidos pelo GLOBO ao relatório do senador Eduardo Braga (MDB-AM), apresentado ontem no Senado com alterações na proposta de emenda à Constituição (PEC) aprovada em julho na Câmara.
O presidente da Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, Davi Alcolumbre (União-AP), quer votar o texto da Reforma Tributária no colegiado no dia 7 de novembro. Ele acredita ainda que nos dias seguintes a matéria poderá ir ao plenário. Se aprovadas as alterações, uma nova votação será necessária na Câmara, o que neste cronograma poderia acontecer ainda em novembro.
‘Festa da cocada’
Para Felipe Salto, economista-chefe da gestora e corretora Warren Investimentos e ex-secretário da Fazenda de São Paulo, o relatório piora a reforma aprovada na Câmara.
Segundo ele, a longa lista de exceções terá como principal consequência uma alíquota mais alta para as duas variantes do imposto sobre valor agregado (IVA) que sairão da fusão de cinco impostos sobre consumo: os federais IPI, PIS e Cofins, o estadual ICMS e o municipal ISS. Isso porque o objetivo da reforma é manter o atual nível de arrecadação desses tributos.
Nas contas de Salto a versão aprovada na Câmara exigiria um IVA de referência em torno de 33%, bem acima de estimativas do governo (entre 25% e 27%). Com mais exceções, alerta o economista, a taxa poderá ficar ainda mais alta e prejudicar os setores não contemplados pelas exceções:
– É a festa da cocada esse negócio das exceções. A alíquota de referência vai ficar mais alta ainda, com as exceções sendo reforçadas – afirmou Salto, que sido um crítico da Reforma Tributária desde o início das discussões no Congresso neste ano.
Salto também criticou outras propostas de Braga, como a trava para impedir aumento da carga tributária, a manutenção do conselho federativo para gerir a arrecadação do IVA a ser partilhado entre estados e municípios e a elevação de R$ 40 bilhões para R$ 60 bilhões do montante que a União aportará no Fundo de Desenvolvimento Regional (FDR), que vai compensar estados por perdas na transição entre os sistemas de impostos.
Preocupações dos estados minimizadas
Para a advogada Juliana de Sousa, tributarista do Cunha Ferraz Advogados, a requalificação do Conselho Federativo como Comitê Gestor do IBS (o IVA que será dividido entre estados e municípios) foi importante para reduzir conflitos entre os estados, que o viam com “superpoderes” capazes de mudar suas competências tributárias e até a divisão da arrecadação:
— Com esse e outros pequenos ajustes propostos, o órgão passa a ter funções meramente arrecadatórias, operacional e administrativo, minimizando as preocupações existentes, sem prejudicar o funcionamento do novo sistema.
‘Deixou a desejar’
Na visão de Sérgio Gobetti, pesquisador licenciado do Ipea e assessor da Secretaria de Estado de Fazenda do Rio Grande do Sul, o relatório “deixou a desejar” por não ter revisto o grande número de exceções, mas, por outro lado, ficou sujeito aos limites da negociação no Congresso sob forte lobby de diferentes setores econômicos reivindicando imposto mais baixo para si.
Ainda assim ele acredita que será bom para o país aprovar a proposta, já que a unificação de impostos acaba com cobranças em cascata e define a arrecadação no destino em que as mercadorias são consumidas, reduzindo ineficiências do atual sistema.
– Dentro das restrições políticas impostas pelo conjunto dos senadores, o relator fez mais ou menos o que era possível – afirmou Gobetti, que, no entanto, não viu grandes riscos com as novas exceções incluídas.
Para ele, a previsão de alíquota reduzida para profissionais liberais é “vergonhosa”, do ponto de vista moral
e simbólico, mas tem efeito fiscal pequeno.
‘Trava evita aumento excessivo de tributos’
A introdução de uma “trava” máxima para aumento da carga tributária no relatório é vista com ceticismo. Gobetti classifica essa previsão como uma “perfumaria”.
– Esse teto não existe – afirma Salto. – Vamos pegar a carga tributária derivada da alíquota que o TCU vai calcular. Aí, passado um ano, verifica-se que a carga ficou mais alta do que a média de 2012 a 2021 e a alíquota vai para baixo. Mas e as despesas que os estados tenham contratado?
Para o tributarista Georgios Theodoros Anastassiadis, sócio do Gaia Silva Gaede Advogados, a “trava” é um dos avanços do relatório, que atende a preocupação da sociedade em relação à carga tributária, mas ele sente falta da inclusão de uma alíquota mínima para o futuro IVA. Ele avalia que o estabelecimento de uma alíquota mínima para a CBS e o IBS seria importante para evitar guerras fiscais.
— Essa trava estabelece um teto de referência com base na média da receita do PIB dos últimos anos, entre o período de 2002 a 2021. Isso significa que, se a carga tributária ultrapassar esse teto, será reduzida, evitando, assim, um aumento excessivo de tributos com a reforma. É uma medida muito positiva. Mas implementação de alíquotas mínimas e máximas traria maior estabilidade e previsibilidade. O advogado também destaca como melhorias na proposta da Câmara o cashback (devolução do imposto pago) obrigatório na conta de luz dos mais pobres e a previsão de revisões das exceções a cada cinco anos.
Para Giuseppe Melotti, sócio do Bichara Advogados, o cashback na conta de luz não é a melhor solução para desonerar o consumidor de baixa renda, embora possa funcionar. Ele diz que esse mecanismo vai burocratizar e dificultar a fiscalização.
Busca de ‘equilíbrio fiscal’
Renato Munduruca, sócio do escritório RM Law, avalia que a trava na carga tributária transcende a mera proteção dos contribuintes, e representa uma escolha de longo prazo que também afeta a gestão pública:
— A limitação das alíquotas não apenas resguarda os interesses dos contribuintes, mas tem o efeito indireto de controlar os gastos públicos, buscando promover um cenário de equilíbrio fiscal e a manutenção da estabilidade macroeconômica no país.
Gustavo Brigagão, sócio do Brigagão, Duque Estrada Advogados, avalia que a redução em 30% da futura alíquota padrão do IVA para profissionais liberais como advogados, dentistas, engenheiros e médicos poderia ter sido mais ambiciosa.
Setores insatisfeitos
Entre os representantes de setores econômicos, as reações foram diversas. Os que não tiveram pleitos contemplados criticaram o relatório. O setor de petróleo e gás criticou a ampliação da abrangência do imposto seletivo (IS) proposta por Braga. Ele definiu que vai incidir sobre a “produção, extração, comercialização ou importação de bens e serviços prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente”.
– Ficou claro que pode ser cobrado sobre a extração de petróleo. (O relatório) está desconsiderando a essencialidade (da cadeia de produção dos combustíveis), colocando o petróleo e derivados como um supérfluo, como cigarro ou bebida alcoólica – afirmou Roberto Ardenghy, presidente do IBP, entidade que reúne as petroleiras no país. – Esperamos que isso seja mudado na discussão. Temos algum tempo para a
discussão pública, para conversar com os senadores.
Gobetti, do Ipea, pondera que o IS terá alíquota pequena. No caso do petróleo, ao ser cobrado apenas uma vez, na extração, o tributo funcionará como uma majoração dos royalties pagos atualmente e deve ter baixo impacto sobre as petroleiras.
O Ibram, que reúne companhias mineradoras, criticou a manutenção do IS e da possibilidade de oneração de produtos primários e semielaborados, argumentando que “no sentido oposto aos princípios que nortearam esta Reforma Tributária, como a não cumulatividade, a não incidência sobre exportações, o princípio de destino e a aplicação uniformidade de alíquotas para diferentes setores”. O comunicado da
entidade defende a supressão do artigo correspondente a este tema.
“Não há justificativas plausíveis de se registrar na Constituição mais um imposto que traz para a reforma os problemas do sistema tributário atual. Segmentos como agronegócio, mineração, entre outros, terão seu ambiente de investimentos e negócios extremamente prejudicados pelo proposto neste artigo, com o esperado repasse de preços ao longo das cadeias produtivas, inclusive, em relação aos alimentos, com forte
pressão sobre a inflação”, diz o texto.
Espinha dorsal preservada
O advogado Marco Monteiro, sócio da área tributária do Veirano Advogados, avalia que espinha dorsal do projeto de reforma tributária foi preservada e que a maior parte das alterações é bem recebida. Ele destaca justamente a delimitação no texto do escopo do IS, que estava com regras “muito abertas” na versão da Câmara:
— Ficou definido que o imposto seletivo será regulado por lei complementar e que se tratará de um tributo para desestimular atividades prejudiciais à saúde ou ao meio ambiente e não para aumentar arrecadação — disse o especialista, lembrando que foi retirado o dispositivo para que este imposto poderia ser aplicado a bens similares aos produzidos na Zona Franca de Manaus (ZFM).
Para proteger os benefícios fiscais da ZFM, Braga (que é amazonense) propôs a criação de uma Cide sobre produtos similares aos incentivados no polo que sejam produzidos fora dele. Em nota, a Associação Brasileira do Setor de Bicicletas (Aliança Bike) considerou que a proposta mantém o risco de sobretaxação desse tipo de veículo.
“O debate sobre os incentivos à produção na ZFM não pode se resumir a sobretaxar excessivamente ‘concorrentes’ que produzem no restante do país, conflitando diretamente com o princípio de isonomia tributária”, afirma a associação.
Supermercados vão insistir em isenção total
Em nota, Associação Brasileira de Supermercados (Abras) criticou a mudança no texto da Câmara que reduziu o alívio fiscal sobre a cesta básica, criando dois grupos de produtos com benefícios distintos. Um com imposto zerado e outro com itens tributados em 60% da alíquota padrão. A entidade avalia que a medida por provocar “um possível aumento de preços” de alimentos.
“A Abras defende uma ampla cesta básica nacional de alimentos isentos de impostos, como aprovado pela Câmara dos Deputados, o que poderia aumentar o consumo desses itens em 8,6% pelas famílias brasileiras e reduzir o preço médio da cesta básica em 7,9% em todo o país”, diz o comunicado.
A associação também considerou o cashback previsto no relatório “uma medida ineficiente”. “A associação sugere ampliar a desoneração dos alimentos para 80% da alíquota padrão e expandir o programa Bolsa Família.
Para Marcello Baird, coordenador de Política Públicas da ACT Promoção da Saúde, a alteração dos benefícios para a cesta básica foi um avanço do novo texto, incluindo a previsão do relator de que a definição do conjunto de produtos “considerará a diversidade regional e cultural da alimentação do País e garantirá a alimentação saudável e nutricionalmente adequada”.
— A redação do trecho sobre cesta básica com alíquota zero foi um ganho para o texto, já que traz um guia importante para a lei complementar (que vai definir os itens que vão compor a cesta). Foi uma vitória garantir a alimentação saudável como critério, inclusive para a cesta básica estendida — diz Baird, que temia que ultraprocessados e açucarados entrassem na cesta.
Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), considerou negativos a manutenção de alíquota reduzida em 60% (o setor pedia 80%) e a possibilidade de o IVA dual ser optativo para produtores rurais com faturamento anual de até R$ 3,6 milhões (eles reivindicavam R$ 4,8 milhões).
— Nossa leitura preliminar é que houve evolução do texto, mas as reivindicações primordiais do setor não foram acatadas. São fulcrais para o setor apoiar a reforma e viabilizar o apoio completo ao texto — afirmou Conchon.
POR VINICIUS NEDER
FONTE: O GLOBO – 26/10/2023