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A política de desoneração da folha de pagamentos foi uma medida ousada, fortemente interventiva e de forte repercussão fiscal, tendo em vista o grau de renúncia de receita que impôs. Toda política econômica que se vale de tributos deve ter, em sua formulação e implementação, as finalidades que se busca atingir.
No dia 31 de março, a Medida Provisória 774 determinou que somente empresas do setor de construção civil e infraestrutura, de transporte coletivo de passageiros (rodoviário, ferroviário e metroviário) e jornalísticas e de radiodifusão poderão manter-se sob o seu sistema.
Com o esvaziamento ainda mais acentuado desta experiência, resta a questão: qual o balanço de sua vigência? A quem interessou o seu fim?
Em uma análise simples, o interesse era do governo, que conseguiu ajustar a sua execução orçamentária podendo contar com mais de R$ 4 bilhões de acréscimo. Não interessou aos setores que tinham uma expectativa legítima de previsibilidade. Os benefícios coletivos já não são tão simples de se avaliar, pois os efeitos econômicos em mercado exigem medições muito mais analíticas do que simplesmente supor que o fôlego obtido pelo governo federal será transmitido diretamente à população.
Mas, nosso texto pretende outra abordagem: qual aprendizado jurídico e econômico obtivemos com a implantação e praticamente extinção do programa?
Como se sabe, a desoneração da folha de pagamento foi a criação de uma contribuição social substituta à contribuição previdenciária patronal tradicional, incidente sobre a folha de pagamentos na razão de 20%. A nova contribuição, denominada Contribuição sobre a Receita Bruta (CPRB), incide sobre a receita bruta, com alíquotas de 1% a 2%, a depender do setor econômico, e, depois, com aumentos que foram entre 2,5% a 4%.
A alteração de bases tributárias, de salário para receita bruta, não é trivial. A Seguridade Social – em seu tripé saúde, assistência social e previdência – deve ser financiada por toda a sociedade e, no caso dos empregadores, como regra, tendo as seguintes bases: lucro, folha de pagamentos (empregados e autônomos) e receita bruta. A supressão da folha em favor da receita bruta, ainda que apenas a alguns setores da economia, significou um exercício de política tributária significativo.
Toda política econômica que se vale de tributos deve (ou deveria) preencher algumas etapas:
(i) estudos para a sua elaboração.
(ii) implementação por meio de normas jurídicas, passando pelo crivo do controle de sua juridicidade e validade; atendimento aos requisitos da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF); gestão orçamentária e de tesouraria, envolvendo os desafios de metas fiscais.
(iii) gestão e governança da política durante a sua vigência: medidas devem ter responsáveis, metas e objetivos.
(iv) fiscalização interna e externa da política: órgãos públicos, comissões e grupos criados por lei; tribunais de contas.
(v) constante avaliação acerca da eficácia e efetividade dos fins pretendidos e resultados obtidos.
Os estudos sobre a troca da base folha de pagamento pela receita bruta não são recentes e nem exclusivos do Brasil[1]. Ainda assim, a sua mera transposição para o sistema tributário brasileiro requereu enormes esforços legislativos, como o de uma emenda constitucional[2], e a sua implementação envolveu um exercício criativo de redação de medidas provisórias, ainda que de qualidade duvidável.
Toda medida deste tipo e porte deve ter em sua exposição de motivos os fins e resultados pretendidos. Algumas políticas são de curto prazo (às vezes anticíclicas), outras são de longo prazo (seja por razões de equidade social, seja por pretensões de alterações de estruturas socioeconômicas, como desigualdades regionais e sociais).
A desoneração da folha de pagamento surgiu como uma das medidas anticíclicas do Plano Brasil Maior, cuja finalidade era a de “sustentar o crescimento econômico inclusivo num contexto econômico adverso”; e de “sair da crise internacional em melhor posição do que entrou, o que resultaria numa mudança estrutural da inserção do país na economia mundial”[3].
Especificamente em relação à desoneração, a exposição de motivos da Medida Provisória 540/2011 registra, ao lado do objetivo de intervenção anticíclica[4], a preocupação com a formalização do emprego e o aumento de produtividade dos setores escolhidos.
Ao lado desses setores iniciais, outros tantos foram sendo incluídos, em técnica de redação para lá de eclética: de forma nominal, por meio do código nacional de atividade (CNAE) e por códigos de produtos (NCM), o que gerou dificuldades até mesmo para a avaliação dos resultados econômicos pretendidos (dados de governo ora utilizam NCMs, ora CNAEs, por exemplo).
Alguns exercícios teóricos e práticos deste tipo de substituição de base de cálculo miram a formalização ou manutenção de empregos e ajustes de sazonalidade de faturamento, retirando o caráter mensal da carga tributária e permitindo a redução pela demissão de funcionários. Contudo, elas também podem ter o efeito perverso de induzir os agentes econômicos à ineficiência, já que há um desincentivo na aquisição de equipamentos para maior eficiência produtiva, já que a mão de obra acaba sofrendo redução de custo.
A política como implantada no Brasil, todavia, teve característica mais interventiva, do ponto fiscal, já que houve o explícito interesse em se estabelecer renúncia de receita (gastos tributários indiretos) em favor dos contribuintes dos setores econômicos eleitos. O fundamento teórico era o de que a disponibilidade em caixa das empresas seria revertida em manutenção ou geração de empregos e aumento de produtividade (acrescido ao fato de que os produtos submetidos ao regime, além desse incentivo, sofreriam menor concorrência com os produtos importados, já que houve o acréscimo de um 1% na Cofins Importação.
A diferença entre o que seria arrecadado no regime original (folha de pagamentos) e no novo regime seria, como foi, reembolsado à Seguridade Social mediante transferência do Tesouro Nacional.
Não obstante o DNA da medida tenha sido uma intervenção anticíclica, ou seja, de caráter pontual e de ajuste às oscilações econômicas, no final de 2014 o governo federal decidiu torná-la permanente (Lei 13.043/2014).
Sem dúvida, políticas anticíclicas lidam, muitas vezes, com renúncias tributárias em favor de setores. A questão que se coloca, contudo, é se foi a melhor forma de se permitir a disponibilidade de parte do que seria arrecadado originalmente no caixa dos contribuintes eleitos.
A complexidade da medida na delimitação dos setores, as alterações de seus termos em ritmo superior ao dos próprios ciclos que pretendia equilibrar; a frustração de investimentos realizados por contribuintes que esperavam a manutenção do seus termos e receberam sinais trocados das equipes de governo (ora pela manutenção definitiva – uma contradição em se tratando de medida anticíclica; ora pela expulsão do regime com aumentos de alíquotas para além do dobro da carga original, ora por sua quase eliminação), tudo isso contribuiu para um clima de insegurança jurídica e de falta de previsibilidade.
Como único resultado positivo fica o recado de austeridade fiscal e de que houve mais redução de gastos do que efetivo aumento de tributo, evitando-se, aqui, contudo, a ingenuidade semântica de se olvidar que reoneração da folha significa, sim, aumento de tributos, ainda que limitado apenas àqueles que até então se beneficiavam do regime.
Deve-se reconhecer que essa foi uma das medidas com maior grau de governança e avaliação, já que houve a criação da Comissão Tripartite de Avaliação da Folha de Pagamento (CTDF), formada por representantes do Governo Federal, dos trabalhadores e empresários[5], responsável por analisar a afetividade de seus impactos econômicos, como geração de emprego e renda, formalização do trabalhador, competitividade, arrecadação tributária, desenvolvimento setorial e capacitação e a inovação tecnológica (artigo 2º do Decreto)[6].
Além disso, algumas das primeiras críticas foram realizadas por estudos dos próprios responsáveis pela avaliação, notadamente a Secretaria de Política Econômica do Ministério da Fazenda, que ressaltou os resultados positivos tímidos, porém, com elevado custo, como tive oportunidade de tratar em coluna anterior[7].
Voltando à questão proposta no início do texto, sobre qual o balanço da medida, ficam alguns pontos:
Medidas anticíclicas que induzem expectativas de perenidade não são boas para o mercado;
Medidas anticíclicas devem ter propostas claras de pontos de partidas e fins pretendidos e prazo para o seu fim (por que são necessárias e até quando?);
Medidas mais relevantes sobre a redução passam por outros caminhos: havia espaço fiscal para uma simples redução de alíquota (dos 20%) da folha de pagamento como um todo?;
Idas e vindas sobre aumentos de alíquotas, reduções da medida a alguns poucos setores, sempre passam uma impressão de dificuldade de se pensar medidas mais generalizantes, com maior praticabilidade, e menos direcionadas;
No processo econômico, os agentes se planejam com um horizonte temporal muito superior a meros 90 dias necessários para se aumentar uma contribuição social: frustrações no cenário macroeconômico e político criam um ambiente de insegurança jurídica desnecessário, daí a frustração legítima daqueles que se planejavam com uma estimativa original de custos que será majorada em menos de 90 dias e justamente em momento de alto desemprego.
Todas essas questões chamam a atenção para a necessidade de se valorizar os momentos de elaboração de medidas econômicas que se valem de tributos e até mesmo de reformas tributárias, ou seja, o respeito aos estudos da fase de elaboração; a forma de implementação; as regras de gestão e governança; a constante fiscalização e a continua avaliação de eficiência e efetividade dos resultados pretendidos e obtidos.
[1] Ver “Macroeconomic Effects of a Shift from Direct To Indirect Taxation: A Simulation For 15 EU Member States. Note presented by the European Commission services (DG TAXUD) at the 72nd meeting of the OECD”. Working Party No. 2 on Tax Policy Analysis and Tax Statistics, Paris, 14-16 November 2006. Disponível em http://www.oecd.org/tax/tax-policy/39494151.pdf. Um balanço mais recente, no contexto europeu, pode ser visto em Koske, Isabell. “Fiscal Devaluation – Can It Help to Boost Competitiveness?” Economics Department Working Paper No. 1089. Disponível em http://www.oecd.org/officialdocuments/publicdisplaydocumentpdf/?cote=ECO/WKP(2013)81&docLanguage=En. No Brasil, já tinha sustentado uma possível política nestes moldes, Gerson Augusto da Silva na década de 1970, em palestra posteriormente publicada como: A Política Tributária como Instrumento do Desenvolvimento. 2ª ed. Brasília: ESAF, 2009.
[2][2] A Emenda Constitucional nº 47, de 2005, inseriu no art. 195: “§ 9º As contribuições sociais previstas no inciso I do caput deste artigo poderão ter alíquotas ou bases de cálculo diferenciadas, em razão da atividade econômica, da utilização intensiva de mão-de-obra, do porte da empresa ou da condição estrutural do mercado de trabalho”.
[3] Conforme divulgado no site do Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (MDIC): http://www.brasilmaior.mdic.gov.br/conteudo/128. As medidas anunciadas em 2011 estão disponíveis em http://www.brasilmaior.mdic.gov.br/images/data/201207/367670d00255e82fd7624f8d8fc61ae5.pdf. As medidas anunciadas em 2012, por sua vez, em http://www.brasilmaior.mdic.gov.br/images/data/201207/f5ed97740e29f1ffb92e34c70a8332f1.pdf.
[4] Consta na Exposição de Motivos da MP 540/2011: “2. Desde a crise financeira internacional em 2008, a economia global vem atravessando uma série de turbulências que colocam em dúvida a capacidade dos países desenvolvidos se recuperarem e voltarem a exibir um crescimento econômico robusto e sustentável. Esse quadro não só tem possibilitado o aumento do peso dos países emergentes, mas também tem lhes permitido atuarem como motor da economia mundial.
- No entanto, esse novo alinhamento tem trazido uma série de desafios à execução da política econômica. Um desses desafios é a manutenção da competitividade externa. Com efeito, a redução da demanda externa por parte dos países desenvolvidos tem desestimulado nossas exportações. Esse efeito aliado ao forte ciclo dos preços das commodities e de redirecionamento dos fluxos de capitais em direção aos países emergentes, que tem causado forte valorização da taxa de câmbio, acaba por reduzir a competitividade da indústria nacional e deteriora o saldo comercial brasileiro”.
[5] Art. 10 da Lei 12.546/2011, regulamentado pelo Decreto nº 7.711, de 3 de abril de 2012.
[6] Ver http://www.desenvolvimento.gov.br/sitio/interna/interna.php?area=1&menu=3827.
[7] http://www.conjur.com.br/2016-fev-21/estado-economia-avaliacao-eficiencia-necessaria-nossa-politica-economica.