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Jorge Luiz de Brito Junior e Maurício Barros A incidência do ISS sobre serviços de transporte via aplicativo e o PLS 493/17 18 de setembro de 2018

O ISS tem representado, de há muito, um capítulo à parte na guerra fiscal presente no cenário tributário brasileiro. Do ponto de vista jurídico, a discussão envolve a definição do município competente para cobrar o imposto, se aquele em que localizado os estabelecimentos prestadores (via de regra, concentrados nos municípios mais desenvolvidos) ou aqueles em que os serviços são efetivamente prestados e/ou tomados.

Essa disputa surge em razão das grandes desigualdades econômicas entre os municípios brasileiros e é acirrada pelo surgimento de novas tecnologias e novos modelos de negócio, que cada vez mais permitem a prestação de serviços de forma remota.

É certo que o sistema tributário brasileiro prevê mecanismos para que os conflitos entre entes tributantes sejam resolvidos. Nesse sentido, a Constituição Federal atribui à lei complementar nacional o papel de pacificar conflitos dessa natureza, sejam eles verticais (distintas esferas: União x estados ou municípios), sejam horizontais (distintos entes na mesma esfera de poder). No que se refere ao ISS, tributo de competência municipal, a lei complementar que exerce essa finalidade é a LC 116/2003, que como regra define o município em que está localizado o estabelecimento prestador como o competente para exigir o ISS sobre a operação, salvo algumas exceções.

Grosso modo, as exceções à regra do município do estabelecimento prestador trazem dois critérios de conexão com os municípios a serem considerados competentes: domicílio do tomador e local da prestação. Além desses dois grupos de hipóteses, a LC 116/2003 também prevê a competência do município em que o prestador constituir uma “unidade econômica ou profissional”, ainda que não haja constituição formal de estabelecimento, conforme artigo 4º[1] e na linha do que já previa o artigo 126, inciso III, do Código Tributário Nacional[2]. Embora o conceito de “unidade econômica ou profissional” seja ambíguo e não conte com definições uniformes entre os municípios, ele tem sido levado em conta em alguns casos para fins de cobrança.

A última alteração promovida à LC 116/03 veio com a edição da LC 157/16, que introduziu novas exceções à regra de recolhimento no local do município prestador. No entanto, as atividades exercidas por meio dos aplicativos de mobilidade e marketplaces, que são típicos da economia colaborativa e vêm ganhando destaque no cenário econômico, ficaram de fora das exceções previstas na LC 157/16.

Em essência, as atividades exercidas por essas empresas correspondem à intermediação de serviços (entre usuário e taxista, por exemplo) e são prestadas de maneira remota por meio de plataformas on-line. Tais operações podem ser enquadradas no item 10.02 da lista da LC 116/03, que prevê a incidência do ISS sobre o agenciamento, corretagem ou intermediação de contratos quaisquer. Como esse item não está arrolado em nenhuma regra excepcionadora, aplica-se aos aplicativos mencionados a regra geral prevista pela LC 116/03, ou seja, que o ISS é devido no local do estabelecimento prestador (onde a empresa está formal e materialmente estabelecida), a não ser que seja possível identificar uma “unidade econômica ou profissional” em outro município, o que demanda produção de provas por parte das autoridades fiscais.

O Senado Federal, contudo, aprovou substitutivo ao PLS 493/2017, que agora segue para votação na Câmara e que prevê outra modificação à LC 116/03, de modo a alterar substancialmente a tributação desses aplicativos. Isso porque o PLS 493/17, além de criar um item específico para o serviço (novo Item 1.10 da Lista de Serviços: “Agenciamento, organização, intermediação, planejamento e gerenciamento de informações, através de meio eletrônico, de serviços de transporte privado individual previamente contratado por intermédio de provedor de aplicações da internet”), prevê que o ISS deverá ser recolhido ao município do local de embarque do tomador, o que difere totalmente do que está previsto atualmente.

Essas alterações, claramente, visam abarcar os serviços de transporte por meio de aplicativos, em uma onda de alterações da legislação tributária que visam alcançar a chamada “economia digital”, tal como ocorre com os inconstitucionais convênios Confaz 181/2015 e 106/2017 (que instituíram a incidência de ICMS sobre os chamados “bens digitais” e criaram uma espécie de estabelecimento permanente virtual para esse fim).

Houve parecer favorável ao projeto apresentado pela Comissão de Assuntos Econômicos (CAE), que enviou um texto substitutivo em que, além de contemplar o recolhimento do ISS aos municípios de destino, foi prevista a instituição de um Comitê Gestor Federal das Obrigações Acessórias do ISS (CGOA). O substitutivo foi aprovado com uma subemenda, que institui a Nota Fiscal eletrônica de serviços de padrão nacional. A adesão ao padrão nacional deverá ser ratificada pelos municípios mediante convênio celebrado no âmbito do Comitê Gestor da Nota Fiscal de Serviço (CGNFS).

Aparentemente, a criação do padrão nacional e do comitê vai ao encontro dos interesses dos aplicativos, pois o discurso dessas empresas tem sido, em geral, menos voltado a pleitear benefícios fiscais e tratamentos privilegiados ao setor e mais destinado a buscar a simplificação dos custos operacionais. Em outras palavras, os aplicativos parecem dispostos a transigir quanto ao recolhimento do ISS aos municípios em que os serviços são tomados e até mesmo a reconhecer a legitimidade e o interesse social desses municípios em tal pleito. A principal agenda dos aplicativos parece ser simplificar os custos operacionais decorrentes da nova regra, de modo a não inviabilizar ou dificultar as suas operações.

Ocorre que, a considerar o histórico da guerra fiscal relativa ao ISS na jurisprudência brasileira, restam dúvidas de que a aprovação do PLS 493/17, realmente, colocaria um fim à discussão.

Basta lembrar que, apesar da redação da LC 116/2003, o STJ de há muito construiu uma jurisprudência que centrou a discussão do município competente para recolher o ISS à análise do local em que, efetivamente, é realizado o serviço. Nesse ponto, em julgamento submetido à sistemática dos recursos repetitivos, o STJ firmou a tese de que, em contratos complexos, caracterizados por diversas prestações realizadas em locais diferentes, como o contrato de leasing então analisado, a análise acerca do local em que é desempenhado o serviço deve se ater às atividades que representem o seu “núcleo” (REsp 1.060.210/SC, rel. ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª Seção, DJe 5/3/2013).

Após a edição da Lei Complementar 116/2003, que firmou, como regra, a competência do município do estabelecimento prestador, a corte superior teve que harmonizar o entendimento anterior, firmado sob o Decreto-lei 406/68, ao novo texto legal. Nessa fase, o STJ, por vezes, manteve o entendimento de que o ISS é devido no local em que os serviços são prestados (e isso, a despeito da expressa dicção da LC 116/2003) e, por vezes, explicitou que o deslocamento de profissionais e recursos para execução de serviços, na verdade, serviria para caracterizar a formação de uma “unidade econômica e profissional”, o que, por sua vez, caracterizaria um estabelecimento prestador, ainda que não reconhecido formalmente[3]. Esse conceito, porém, como já mencionado, não é expresso em lei e contempla subjetividades, servindo como subterfúgio para se cobrar o ISS onde o serviço é efetivamente prestado, contrariando a regra geral da LC 116/03.

Com esse cenário, a definição do local da prestação continua envolta em diversas nuances estabelecidas pela jurisprudência (existência ou não de unidade econômica ou existência de contratos complexos, com prestações executadas em mais de uma localidade), de modo que a jurisprudência serviu para fomentar diversas situações em que mais de um município passou a reclamar a cobrança de ISS sobre um mesmo fato, o que acarretou o surgimento de inúmeras discussões nos âmbitos administrativo e judicial que perduram até hoje.

Transportando o entendimento jurisprudencial histórico do STJ para as atividades dos aplicativos da chamada economia colaborativa, há, na verdade, a disponibilização de uma plataforma on-line em que consumidores e prestadores se encontram, sendo que as decisões gerenciais e operacionais, além de toda a estrutura humana necessária para suportar esse “encontro” (núcleo dos serviços), não estão no município de domicílio do tomador (a não ser que haja uma coincidência).

Esse entendimento impõe um questionamento sobre a legalidade e constitucionalidade da eventual nova regra a ser introduzida a partir da aprovação do PLS 493/17, pois os municípios onde são realizados os embarques dos tomadores/passageiros não teriam vínculo de conexão a legitimar a cobrança do ISS sobre os serviços das plataformas, cujas características preponderantes são de um serviço de intermediação. Dadas essas características do serviço, seria problemático enxergar a formação de “unidade econômica e profissional” das plataformas nesses municípios, pois os motoristas não possuem, em princípio, um vínculo profissional com os aplicativos, podendo ser caracterizados como meros usuários de seus serviços de intermediação.

O município de São Paulo, por exemplo, já manifestou entendimento de que tem competência para tributar os serviços desses aplicativos (Solução de Consulta 32/2014), pronunciamento que foi emitido pela prefeitura paulistana ao analisar a prestação de serviço de viabilização de corridas de táxi por meio de uma base de táxis cadastrados e um aplicativo que conecta o passageiro ao carro mais próximo.

Logo, uma vez aprovado o PLS 493/17, resta saber qual será o posicionamento das grandes capitais, como São Paulo, uma vez que o novo projeto acarretará a potencial perda de sua arrecadação. Além disso, tais municípios poderão questionar a nova regra tendo em vista o princípio, até então consagrado pela jurisprudência do STJ, de que os municípios somente podem tributar aquilo que guarde conexão com seu território. No caso, tendo em vista que a atividade de intermediação prestada pelos aplicativos é realizada integralmente de forma remota, não haveria elemento de conexão a autorizar a cobrança no município em que realizado o embarque do tomador, tal como pretende o PLS 493/17.

É legítimo o desejo dos municípios de ampliar a sua base de tributação, sobretudo nos casos em que há riqueza gerada localmente. Entretanto, no caso dos serviços de transporte por aplicativo, existem dois serviços prestados simultaneamente, a saber: (a) o serviço de intermediação prestado pelo aplicativo, que está sendo objeto do PLS e é integralmente prestado de forma remota; e (b) o serviço de transporte, este sim prestado localmente e cuja exigência tributária poderá ser (b.1) de competência do município, caso seja integralmente prestado em seu território (item 16.02 da lista de serviços tributáveis: Outros serviços de transporte de natureza municipal), ou (b.2) de competência do estado, caso ele seja finalizado em outro município (hipótese de incidência do ICMS, cujo produto da arrecadação é parcialmente destinado aos municípios). Essa operação, que representa a parte principal da contratação (ao menos sob o ponto de vista jurídico), já é (ou deveria ser) tributada pelos municípios em que ocorre a prestação dos serviços, o que dispensaria a necessidade de qualquer imposição sobre os aplicativos pelos mesmos entes.

Nesse contexto, o que poderia ser criada é uma obrigação de retenção, por parte dos aplicativos, do ISS ou ICMS devido pelos prestadores de serviços de transporte, de maneira centralizada e simplificada, de modo a garantir a arrecadação dos municípios (ou estados) em que os serviços são prestados, sem prejuízo do recolhimento da parcela que fica em poder do aplicativo e o remunera (comissão), esse de competência do município em que a intermediadora está estabelecida. Essa medida traria uma grande vantagem de trazer para a formalidade operações que podem passar ao largo das estruturas arrecadatórias locais, evitando uma enorme evasão fiscal e, consequentemente, neutralizar o anseio arrecadatório dos municípios sobre a riqueza gerada em seus limites territoriais.

Sendo assim, não há dúvidas de que a cobrança de ISS pelos municípios em que localizados os tomadores dos serviços — ou seja, em que ausente estabelecimento prestador — é questionável dos pontos de vista legal e constitucional e tende a provocar disputas judiciais e entraves operacionais à atuação dos aplicativos de transporte individual. Por outro lado, simplificar a questão é possível e traria os benefícios imediatos de evitar ainda mais judicialização na tributação brasileira com a perspectiva de trazer para a formalidade operações que não vêm gerando arrecadação.

[1] Art. 4º Considera-se estabelecimento prestador o local onde o contribuinte desenvolva a atividade de prestar serviços, de modo permanente ou temporário, e que configure unidade econômica ou profissional, sendo irrelevantes para caracterizá-lo as denominações de sede, filial, agência, posto de atendimento, sucursal, escritório de representação ou contato ou quaisquer outras que venham a ser utilizadas.
[2] Art. 126. A capacidade tributária passiva independe:
(…)
III – de estar a pessoa jurídica regularmente constituída, bastando que configure uma unidade econômica ou profissional.
[3] TRIBUTÁRIO. AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL. ISSQN. COMPETÊNCIA TRIBUTÁRIA ATIVA. FIXAÇÃO. AFIRMAÇÃO, CONTIDA NO ACÓRDÃO RECORRIDO, DE QUE HÁ, EFETIVAMENTE, UNIDADE DA EMPRESA NO LOCAL DA PRESTAÇÃO DO SERVIÇO. MATÉRIA INSUSCETÍVEL DE REEXAME, EM SEDE DE RECURSO ESPECIAL. SÚMULA 7/STJ. AGRAVO REGIMENTAL IMPROVIDO.
I. Uma vez afirmado, no acórdão recorrido, que, no local da prestação do serviço, existe, efetivamente, uma unidade da empresa, de modo a atrair a competência tributária ativa para o Município da execução, em detrimento daquele em que sediada a empresa, a matéria não mais pode ser reexaminada, em sede de Recurso Especial, dada a vedação contida na Súmula 7 do STJ” (AgRg no AREsp 560.961/MG, Rel. Ministra ASSUSETE MAGALHÃES, SEGUNDA TURMA, julgado em 15/03/2016, DJe 17/03/2016).

Fonte: ConJur