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A revisão das políticas nacionais para bens remanufaturados, que pretende permitir a importação de bens industrializados pelo fabricante original do produto ou autorizado em idênticas condições do original, foi objeto deste Território Aduaneiro em recente e auspicioso artigo da colunista Fernanda Kotzias (aqui). A intenção do governo federal sujeita-se ao influxo da preocupação ora em não se promover o insulamento do país com relação a este mercado internacional em franca expansão, ora em se prestigiar a sustentabilidade e o meio ambiente por meio do aproveitamento otimizado dos recursos disponíveis.
O olhar especial para o setor de autopeças (uma vez que potencial autorização se estenderia a bens de consumo, partes e peças), deve-se à sua ampla representatividade nas trocas com os parceiros comerciais neste nicho, que não se confunde com o de bens reparados ou recondicionados, o que também justifica se abordar o tema por uma perspectiva diferente e complementar, igualmente voltada à modernização, à pesquisa, ao desenvolvimento (P&D) e aos ideais de proteção do meio ambiente, o regime de autopeças não produzidas.
O “Regime de Autopeças Não Produzidas” é uma política industrial do setor automotivo aplicável às importações de partes, peças, componentes, conjuntos e subconjuntos, acabados ou semiacabados, novos e destinados exclusivamente à produção de autopeças e veículos por empresas automotivas.
O desenho original da política foi o formato de redução tarifária na importação de autopeças, conforme previsão do Acordo sobre Política Automotiva Comum entre o Brasil e a Argentina, firmado no 38º Protocolo Adicional ao Acordo de Complementação Econômica nº 14 (ACE 14)¹, internalizado pelo Decreto nº 6.500/2008, posteriormente prorrogado e modificado pelos 40º a 44º Protocolos Adicionais ao ACE 14², aplicável a beneficiários previamente habilitados. A Resolução Camex 61, de 23 de junho de 2015, foi o ato responsável pela regulamentação da aplicação do ACE 14 no Brasil, cuja lista atualizada de autopeças beneficiadas pela redução tarifária consta da Resolução Gecex nº 284, de 23 de dezembro de 2021.
Com a promulgação da Lei nº 13.755/2018 e do Decreto nº 9.557/2018, diplomas que instituíram e regulamentaram o Programa Rota 2030, a importação das autopeças pelo beneficiário previamente habilitado passou a implicar isenção tarifária do imposto de importação condicionada à realização de dispêndios em P&D correspondentes a 2% do valor aduaneiro dos itens importados sob o regime, fonte de recursos voltada a estimular o investimento em projetos e programas prioritários do setor automobilístico.
O advento do programa Rota 2030 no ano de 2018 passou a franquear ao importador a possibilidade de se habilitar em dois distintos regimes tarifários, com fundamentos legais distintos: (a) atual Resolução Gecex 285, de 23 de dezembro de 2021 (antiga Resolução Camex 102, de 17 de dezembro de 2018), que relaciona as autopeças sujeitas ao regime tributário de isenção do imposto de importação – Regime Tributário RT-3, fundamentos legais 92 e 96; e (b) Resolução Gecex 284, de 23 de dezembro de 2021 (antiga Resolução Gecex 23, de 30 de dezembro de 2019), que relaciona as autopeças sujeitas ao regime tributário de redução do imposto de importação – Regime Tributário RT-4, fundamentos legais 59 e 95.
O regime de isenção tarifária, ao contrário do regime de redução, obriga que o produtor utilize totalmente os itens importados com benefícios, devendo as autopeças importadas serem aplicadas integralmente na industrialização de produtos automotivos no prazo de três anos contados do desembaraço aduaneiro, ou seja, não é permitida a importação para revenda direta³. O Decreto 9.557/2018, por sua vez, tolera o percentual de perda inevitável do processo produtivo, na forma declarada na Escrituração Fiscal Digital (EFD) da empresa⁴.
Ao se recortar o segmento automotivo como uma cadeia que se estende do importador ao consumidor, que utilizará o veículo e demandará partes e peças ao longo da vida útil do bem, é possível se perceber uma assimetria de tratamento na medida em que os incentivos do setor restringem-se à cadeia produtiva industrial, por meio da aplicação do regime de ex tarifário aos insumos dos produtos automotivos não produzidos nacionalmente, existindo, por ora, a limitação quanto à importação de bens remanufaturados.
O recurso ao expediente do ex tarifário, no caso do regime de autopeças não produzidas, consubstancia-se em um vero benefício tributário voltado a estimular ou induzir o agente econômico a investir em P&D, mas de aplicação exclusiva para aquelas empresas previamente habilitadas e que utilizam os insumos importados na industrialização de produtos automotivos, o que, nos termos do artigo 23 da Lei nº 13.755/2018, acaba por contemplar grandes indústrias do segmento (poucas, fortes e organizadas), sem alcançar o pós-venda formado predominantemente por oficinas (pulverizadas e de organização centrífuga), deixando ao desamparo considerável parte do setor, o que tem por efeito o repasse dos custos ao consumidor final e, a exemplo disso, podemos citar o mercado das peças de reposição.
Considerando a diminuição dos custos de produção dos itens remanufaturados em até 50%⁵, a implementação de política de remanufatura automotiva no Brasil, sob ponto de vista da importação, ainda que não abrangida pelo regime de ex tarifário das autopeças não produzidas, permitiria maior oxigenação do mercado de reposição, garantindo que os bens de consumo remanufaturados importados possam ser comercializados no território nacional sob preços mais competitivos.
Desta feita, a entrada em vigor das novas regras de importação de bens remanufaturados pode trazer implicações positivas para a diversificação de fornecedores de autopeças no Brasil, especialmente dentro do setor de reposição, sem prejuízo da manutenção das benesses à cadeia industrial automotiva na forma pensada pelo Rota 2030, ainda que o recurso ao mecanismo da exceção tarifária para promoção de um estímulo fiscal possa encontrar questionamentos no âmbito da OMC.
*Este artigo é comemorativo do lançamento, no dia 3/6, às 15h na sede da OAB-SP, do livro “Direito aduaneiro contemporâneo: temas de impacto no direito aduaneiro e comércio exterior”, elaborado sob a coordenação de Robson Crepaldi, Rodrigo Lázaro, e Sidnei Lostado, e promovido pela Comissão Especial de Direito Aduaneiro da Ordem dos Advogados do Brasil, secção de São Paulo, com o qual colaboramos com texto voltado a detalhar os aspectos operacionais do programa.
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¹ Ficha técnica disponível em: https://www.gov.br/produtividade-e-comercio-exterior/pt-br/assuntos/comercio-exterior/regimes-de-origem/certificado-de-origem/FichaTcnica_ACE14_17.12.20.pdf, acesso em 6/9/2021.
² Internalizados pelos Decretos 8.278/2014; 8.477/2015; 8.797/2016; 10.262/2020 e 10.343/2020.
³ Lei nº 13.755/2018: Art. 24. Os bens importados com a isenção de que trata o art. 21 desta Lei serão integralmente aplicados na industrialização dos produtos automotivos pelo prazo de 3 (três) anos, contado da data de ocorrência do fato gerador do imposto de importação. (Produção de efeito)
§ 1º. O beneficiário que não promover a industrialização no prazo a que se refere o caput deste artigo fica obrigado a recolher o imposto de importação não pago em decorrência da isenção usufruída, acrescido de juros e multa de mora, nos termos de legislação específica, calculados a partir da data de ocorrência do fato gerador.
§ 2º. O Poder Executivo federal disporá sobre o percentual de tolerância no caso de perda inevitável no processo produtivo.
⁴ Decreto 9.557/2018: Art. 37. Os bens importados com a isenção de que trata o art. 34 deverão ser integralmente aplicados na industrialização dos produtos automotivos no prazo de três anos, contado da data de ocorrência do fato gerador do II.
§ 1º. O beneficiário que não promover a industrialização no prazo a que se refere o caput ficará obrigado a recolher o II não pago em decorrência da isenção usufruída, acrescido de juros e multa de mora, nos termos previstos em legislação específica, calculados a partir da data de ocorrência do fato gerador.
§ 2º. Para fins do disposto no caput, será tolerado o percentual de perda inevitável ao processo produtivo declarado na Escrituração Fiscal Digital.
⁵ Conforme exposto por Fernanda Kotzias: “Um dos setores industriais que responde pela maior parte do fluxo comercial internacional de remanufaturados é o de autopeças, visto que até 60% das partes automotivas são passíveis de reutilização após o fim da vida útil. O curioso é que a tendência não é adotada apenas pelos produtores voltados a nichos mais populares. Marcas tradicionais e de prestígio como BMW e Mercedes-Benz vem apostando na remanufatura não apenas para redução dos custos de produção — que chegam a 50% — mas como forma de agregar sustentabilidade à sua imagem“. Disponível em https://www.conjur.com.br/2022-abr-26/territorio-aduaneiro-novas-regras-bens-remanufaturados, acesso em 6/5/2022.
*Artigo publicado originalmente no ConJur.