Jurisprudência da 1ª e da 2ª Turmas é favorável à aplicação. Mesmo assim, Carf deve manter súmula com entendimento distinto até decisão final do STJ.
O Superior Tribunal de Justiça (STJ) julgará sob a sistemática dos repetitivos dois recursos que discutem se a prescrição intercorrente, ou seja, o arquivamento do processo após paralisação por mais de três anos, se aplica a infrações aduaneiras. A jurisprudência da 1ª e da 2ª Turmas do tribunal é favorável à aplicação da prescrição nesses casos. Com isso, esse entendimento deve ser reafirmado pela 1ª Seção, que une as duas turmas de Direito Público. Enquanto os repetitivos não são julgados, o JOTA apurou que a tendência é que o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) não revise a Súmula 11, que vai em sentido contrário à posição da Corte.
A 1ª Seção do STJ decidiu nesta segunda-feira (5/11) afetar os REsps 2147578/SP e 2147583/SP à sistemática de repetitivos. Com isso, tribunais em todo o Brasil, com exceção do Supremo Tribunal Federal (STF), serão obrigados a aplicar o entendimento do STJ em casos idênticos. Ainda não há data para o julgamento dos repetitivos.
A prescrição em análise é a prevista no artigo 1º, parágrafo primeiro, da Lei 9.873/1999, que trata do processo administrativo federal. A discussão envolve, sobretudo, a aplicação dessa norma a infrações aduaneiras. Em agosto, a 2ª Turma do STJ proferiu três decisões para aplicar essa prescrição a multas desta natureza. Como a 1ª Turma já adotava o entendimento desde 2023, os julgamentos representaram pacificação sobre o tema na 1ª Seção.
Se no STJ a discussão foi pacificada, no Carf, por outro lado, a expectativa é que o entendimento da Corte sobre a prescrição intercorrente reacenda a discussão em torno do tema. A Súmula 11 do tribunal administrativo prevê que a prescrição intercorrente não se aplica ao processo administrativo fiscal. Hoje, a jurisprudência no Carf é pela aplicação da súmula de forma generalizada, ou seja, sem fazer distinção para as infrações aduaneiras. Ao JOTA, fontes afirmaram que o entendimento do STJ deve aumentar o debate no Carf, mas não necessariamente levar a uma mudança na posição do órgão. Mesmo com a definição de que o caso será julgado sob a sistemática de repetitivos, a avaliação é que o Carf manterá a súmula até a decisão final da 1ª Seção do STJ. O conselho só é obrigado a seguir posições do STJ definidas em teses repetitivas e do Supremo Tribunal Federal (STF), em repercussão geral.
“[Antes do julgamento dos repetitivos], não há obrigatoriedade de o Carf seguir o posicionamento do STJ, e os conselheiros continuam livres para formar a sua convicção”, afirma o tributarista Leonardo Branco, sócio do escritório DDTAX Advocacia Tributária e ex-conselheiro do Carf.
Alternativas
Segundo advogados e conselheiros, o tribunal administrativo pode seguir três caminhos. Um deles é continuar aplicando a Súmula 11 a todos os casos, uma vez que não foi fixado tema repetitivo. Outra opção é abrir um distinguishing, que ocorre quando a decisão tomada em um processo difere dos precedentes devido a características específicas daquele caso. Nesta hipótese, o distinguishing em relação à súmula seria para os processos envolvendo infrações aduaneiras. Por fim, o Carf pode decidir cancelar a súmula. A avaliação majoritária é que crescerá o número de conselheiros que fazem o distinguishing, mas que a súmula ainda não será cancelada.
No STJ, a 1ª Turma proferiu a primeira decisão favorável à aplicação da prescrição intercorrente às infrações aduaneiras no julgamento do REsp 1999532/RJ , em maio de 2023. Em agosto deste ano, a 2ª Turma decidiu no mesmo sentido ao julgar os REsps 1942072/RS , 2002852/SP e 2120479/SP .
Caráter administrativo ou tributário
A discussão jurídica em relação à aplicação da prescrição intercorrente das infrações aduaneiras gira em torno da sua natureza. Os contribuintes argumentam que, por não terem caráter tributário, elas não estão sujeitas às regras que regem o processo administrativo fiscal. A advogada Tânia Laredo, do escritório Gaia Silva Gaede, afirma que o caráter tributário das infrações se manifesta quando deixa de haver o recolhimento do tributo. “É diferente da multa por informação inexata ou equivocada no preenchimento da declaração de importação, por exemplo. Se [a infração] não influenciar no recolhimento [do tributo], não tem caráter tributário”, diz. Para a tributarista, com as decisões do STJ sobre o tema, a Súmula 11 do Carf “perde força” em relação às infrações aduaneiras.
O advogado Paulo Mansin, sócio do Lunardelli, cita como exemplo de penalidades por infração aduaneira a multa de 1% sobre o valor aduaneiro da mercadoria por declaração inexata ou incompleta e a multa de 30% por falta de licença de importação.
“São multas tratadas no Carf porque é competência da Receita cobrar. Mas, se analisar, a natureza da multa não é tributária, é aduaneira. Deveria ser revista a Súmula 11 ou, ao menos, que as próximas decisões façam esse distinguishing. O Carf agora está com turmas especializadas em direito aduaneiro. Eu diria que é uma excelente oportunidade para os conselheiros que são especialistas no tema se aprofundarem”, defende Mansin.
O Carf passou a ter turmas especializadas em direito aduaneiro este ano. Os colegiados são a 1ª e a 2ª Turmas da 4ª Câmara da 3ª Seção. Na prática, os órgãos julgadores funcionam como turmas ordinárias, com possibilidade de as partes recorrerem à 3ª Turma da Câmara Superior contra suas decisões. A diferença é que todos os recursos envolvendo temas aduaneiros são encaminhados para os dois colegiados. O objetivo do modelo é permitir um aprofundamento nos temas aduaneiros, levando a decisões mais especializadas.
Tema sensível
No tribunal administrativo, a discussão sobre a Súmula 11 é considerada sensível devido a um episódio ocorrido em 2021. Em abril daquele ano, durante julgamento da 1ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção do Carf, alguns conselheiros que votaram contra a aplicação da súmula foram alertados pelo presidente do colegiado que poderiam sofrer representação. À época, entidades que representam os advogados manifestaram apoio aos julgadores e, no fim, não houve representação, um procedimento que poderia levar à perda do mandato de conselheiro.
A conselheira Mariel Orsi, da 2ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, explica que a aplicação das súmulas é obrigatória para os conselheiros, mas há exceções nos casos de distinguishing e overruling. “[Distinguishing e overruling] são duas figuras da teoria dos precedentes no Código de Processo Civil de 2015. Existem outros casos de súmulas [do Carf] afastadas via distinguishing, que é a diferenciação feita entre o conteúdo da súmula e o caso concreto, para afastar sua aplicabilidade. O STJ pacificou o tema com decisões na 1ª e 2ª Turmas pelo reconhecimento da prescrição intercorrente para multas aduaneiras”, afirma a julgadora.
Citada pelos colegas como a única conselheira do Carf que faz o distinguishing da Súmula 11 em relação às infrações aduaneiras, Orsi confirma a informação. Para a conselheira, com a posição pacificada nas duas turmas do STJ, há respaldo técnico para afastar a súmula quanto às multas aduaneiras. “Embora os conselheiros estejam sob a guarida da liberdade de aplicar ou não a súmula, não faz sentido não aplicar a posição do STJ. Firmar posicionamento contrário à jurisprudência do STJ nos julgamentos no Carf tem o grave efeito de fomentar e aumentar as demandas no Judiciário”, observa.
A conselheira cita um exemplo de tema cuja jurisprudência foi pacificada no STJ, sem fixação de tema repetitivo, e adotada pelo Carf, inclusive com edição de súmula. Trata-se da discussão sobre a possibilidade de a Receita fazer revisão aduaneira mesmo nos casos em que houve participação do agente público na conferência dos bens importados. A 1ª Seção tem jurisprudência pacífica pela possibilidade de realização da revisão aduaneira mesmo após o desembaraço da mercadoria com participação do fiscal. São exemplos o REsp 1201845/RJ, da 2ª Turma, e o REsp 1826124/SC, da 1ª Turma. O entendimento é desfavorável aos contribuintes.
Em relação ao tema, o Carf aprovou , em setembro, a Súmula 216, que dispõe que “o desembaraço aduaneiro não é instituto homologatório do lançamento e a realização do procedimento de ‘revisão aduaneira’ não implica ‘mudança de critério jurídico’ vedada pelo artigo 146 do CTN, qualquer que seja o canal de conferência aduaneira”.
As súmulas do Carf são baseadas em precedentes julgados pelo tribunal administrativo. “O caso [da revisão aduaneira] foi objeto de súmula justamente porque os conselheiros já se posicionavam de forma coerente ao entendimento firmado no STJ desde sua pacificação”, observa Mariel Orsi.
Já no caso da prescrição intercorrente, em dois julgamentos posteriores à posição do STJ, a 2ª Turma da 4ª Câmara da 3ª Seção, à qual pertence Orsi e que é um dos colegiados especializados em direito aduaneiro, manteve a aplicação da Súmula 11. Os processos foram os de número 10314.720124/2018-62 e 11128.005916/2009-82.
Precedentes tributários
O advogado Carlos Daniel Neto, sócio do DDTAX, escritório que atuou no REsp 1942072/RS, um dos precedentes de agosto da 2ª Turma, defende que o Carf estabeleça um distinguishing para as infrações aduaneiras. O tributarista argumenta que a própria Súmula 11 foi aprovada unicamente com base em precedentes envolvendo discussões tributárias.
“As multas aduaneiras estão sujeitas ao regime da lei [9873] que fala de infrações federais de caráter administrativo. Por isso, elas estariam sujeitas à prescrição intercorrente no âmbito do processo do Carf. O que eu levantei, desde 2021, foi que essa súmula foi feita só com precedentes tributários. Não se analisou nenhum precedente não tributário. Com base nisso, por si só, [a súmula] não seria aplicável às multas aduaneiras. Já teria que fazer o distinguishing”, afirma Carlos Daniel Neto.
O advogado sustenta ainda que o STJ já teria decisão em tema repetitivo que permite concluir que as infrações aduaneiras seriam regidas pela Lei 9873. Trata-se do REsp 1115078 (Tema 324), pela aplicabilidade da legislação quando se trata de multa administrativa do Ibama. “As duas turmas do STJ já firmaram entendimento de que [o tema repetitivo] não se restringe a procedimentos de infrações ambientais”, observa.
Ele destaca ainda que, com decisões da 1ª e 2ª Turmas favoráveis à prescrição intercorrente para infrações aduaneiras, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já pode editar um parecer pela dispensa de recurso. “Uma vez consolidado o entendimento, o que se espera é que a procuradoria deixe de recorrer. E o Carf deve abrir os olhos para o que ocorre fora do Carf”, diz.
Branco, também sócio do DDTAX, defende igualmente a adoção de um distinguishing pelo Carf. Para ele, o tribunal administrativo deveria aplicar a posição da 1ª e 2ª Turmas do STJ com o intuito de reduzir a judicialização. “Se mantiver as multas aduaneiras sem reconhecer a prescrição intercorrente, por aplicação da Súmula 11, o Carf vai estar praticamente obrigando [o contribuinte] a ir para o Poder Judiciário. Como hoje tem um esclarecimento, um amadurecimento das instituições no sentido de desafogar o Judiciário, resolver com autotutela, o Carf pode fazer algo simples: dizer que, neste caso [infrações aduaneiras] a súmula não se aplica”, defende.
A Portaria PGFN 502/2016, a norma geral de dispensa de recursos da Fazenda Nacional, prevê uma série de hipóteses em que os procuradores devem deixar de recorrer, inclusive a existência de jurisprudência consolidada sobre determinado tema nos tribunais superiores. Ao JOTA, uma fonte ligada à PGFN afirmou que a edição do parecer de dispensa de recurso não é automática.
O representante da Fazenda destacou que, no caso da prescrição intercorrente das infrações aduaneiras, a PGFN entende que há poucos precedentes e que a questão ainda não foi analisada a fundo pelas turmas de Direito Público do STJ. “Não foi analisada a fundo principalmente a questão de se criar um regime híbrido, meio paradoxal: corre a prescrição, mas a cobrança do crédito está suspensa por conta do recurso. Tudo que é cobrado via processo administrativo fiscal tem um procedimento específico, com razão de ser. Não corre prescrição intercorrente porque a parte não pode ser cobrada enquanto não for julgado o seu recurso”, afirmou a fonte.
Por: Cristiane Bonfanti & Mariana Branco.
Fonte: JOTA.