Fisco regulamenta Lei do Carf e define que afastamento da penalidade não vale para multas isoladas, aduaneiras e moratórias.
A Receita Federal restringiu as hipóteses de exclusão de multas e de cancelamento da representação fiscal para fins penais em casos decididos a favor da Fazenda Nacional por voto de qualidade no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Por meio da Instrução Normativa 2.205/2024, publicada nesta quarta-feira (24/7) no Diário Oficial da União, o fisco definiu que multas isoladas, aduaneiras e moratórias não são excluídas em caso de decisão por voto de qualidade favorável ao fisco.
Outra restrição que gerou polêmica entre os contribuintes é a definição de que a exclusão de multas e o cancelamento da representação fiscal para fins penais não serão aplicados para casos julgados definitivamente no Carf antes de 12 de janeiro de 2023. Por meio da representação fiscal para fins penais, o fisco envia informações ao Ministério Público sobre a existência de uma dívida tributária e potenciais crimes cometidos pelos contribuintes. Isso pode levar à abertura de inquérito e oferecimento de denúncia ao Judiciário por crime contra a ordem tributária.
O objetivo da instrução normativa é regulamentar alterações promovidas pela Lei 14.689/2023, a Lei do Carf, que trouxe de volta o voto de qualidade. Ou seja, o voto de minerva do presidente da turma, que é sempre um representante do fisco, em caso de empate.
Restrições ilegais
Para advogados ouvidos pelo JOTA, no entanto, as restrições impostas pela IN 2.205/2024 violam diretamente a Lei do Carf. Esta norma acrescentou o parágrafo 9º-A ao Decreto 70.235/1972 para definir que, em julgamento favorável à Fazenda Nacional por voto de qualidade no conselho, ficam excluídas as multas e cancelada a representação fiscal para os fins penais. Ou seja, não houve qualquer limitação quanto à espécie de multa que seria retirada.
Ainda, o artigo 15 da Lei do Carf determinou que esses benefícios se aplicariam inclusive aos casos já julgados pelo conselho e ainda pendentes de apreciação do mérito pelo Tribunal Regional Federal competente na data da publicação da lei, ou seja, em 21 de setembro de 2023.
O advogado Frederico Rodrigues da Cunha, sócio do escritório Gaia, Silva, Gaede Advogados, avalia que a IN 2.205/2024 é restritiva e extrapola o definido pelo Congresso Nacional. “A lei não limitou o tipo de multa que deve ser cancelada, em caso de empate no julgamento. Não houve menção a qualquer dispositivo legal ou individualização do tipo de multa que seria cancelada, motivo pelo qual entendemos abarcar todas as multas objeto do lançamento”, disse o advogado, que considera a limitação ilegal.
Cunha avalia que essas limitações vão gerar discussões judiciais, o que pode, inclusive, prejudicar o objetivo do governo federal de arrecadar com o pagamento de débitos mantidos por voto de qualidade no Carf. Inicialmente estimada em R$ 55,6 bilhões para 2024, essa projeção foi reduzida para R$ 37,7 bilhões no relatório de avaliação bimestral das contas públicas divulgado esta semana. “Por fim, a instrução normativa também traz previsão, não contida na Lei 14.689/2023, de que o pagamento importa em confissão extrajudicial irretratável da dívida, o que não pode ser feito por ato infralegal”, acrescentou.
Pedro Lima, sócio tributário na Nelson Wilians Advogados e ex-conselheiro do Carf, considera que, além de a Receita não poder fazer essas alterações por ato infralegal, ela não poderia fazer outra interpretação da Lei do Carf que não fosse a literal.“Ato normativo secundário não pode restringir disposição normativa expressa em lei. De forma muito clara e direta, o parágrafo 9-A do art. 25 do Decreto Lei 70.235/72 prevê a exclusão das multas e o cancelamento da representação fiscal para fins penais nos casos de desempate em favor da Fazenda Nacional pelo voto de qualidade e não faz nenhuma restrição. Também não comporta nenhuma interpretação a não ser a literal”, diz.
O tributarista Júlio César Soares, sócio da Advocacia Dias de Souza, avalia que qualquer restrição só poderia ser realizada com ato com força de lei, uma vez que extrapola o decidido pelo Congresso Nacional. O advogado ressalta ainda o fato de ser a própria Receita Federal limitando um benefício que envolve a relação entre os fiscos e os contribuintes. “Não é a Receita que tem de falar qual é a multa [contemplada na lei]. Ela é parte nos processos administrativos. E o Carf é um órgão que, embora integre a estrutura do Ministério da Fazenda, não está sujeito à Receita”, avaliou.
Na visão de Soares, também é evidentemente ilegal a determinação de que os benefícios não se aplicam a decisões definitivas do Carf por voto de qualidade anteriores 12 de janeiro de 2023. “São limitações que não encontram amparo na lei”, destacou.
Por outro lado, Tatiana Migiyama, líder do Comitê Tributário do Instituto Brasileiro de Executivos de Finanças (IBEF) e consultora técnica da Associação Brasileira das Companhias Abertas (Abrasca), avalia positivamente o art. 4º da IN 2.205/2024, que traz que a exclusão das multas e o cancelamento da representação fiscal para fins penais não se aplicam a decisões que se tornaram definitivas anteriormente a 12 de janeiro de 2023. Ela lembra que, nessa data, foi publicada a MP 1.160/2023, que reinstituiu o voto de qualidade no Carf e depois caducou. Ou seja, antes dessa data, em caso de desempate, as decisões eram favoráveis aos contribuintes, não havendo que se falar nessas penalidades, pois os débitos já haviam sido afastados.
“A redação é boa no sentido de esclarecer que, mesmo que o julgamento de mérito tenha se iniciado e já com direcionamento negativo antes de 12 de janeiro de 2023 e tenha sido concluído depois ‘de forma definitiva’, agora sim com o voto de qualidade desfavorável aos contribuinte, eles terão direito aos benefícios”, explica Migiyama, que é ex-conselheira do Carf.
Responsabilidade tributária, direito creditório e decadência
Outra restrição imposta pela IN 2.205/2024 diz respeito à impossibilidade de exclusão da multa e de cancelamento da representação fiscal para fins penais os casos que envolvam responsabilidade tributária, direito creditório e decadência.
A tributarista Fernanda Baracuí, do Machado Meyer Advogados, explica, por exemplo, que se uma decisão por voto de qualidade no Carf favorável à Fazenda mantém a responsabilidade tributária, neste caso não poderão ser afastadas as multas e cancelada a a representação fiscal para fins penais. Há casos, por exemplo, que o sócio é responsabilizado por débitos da empresa. O mesmo acontece se a decisão do Carf reconhece que o contribuinte não tem direito a um crédito tributário ou que não houve decadência de um crédito cobrado pela Fazenda, por exemplo.
Baracuí lembra que, por meio do Parecer 943/2024, publicado em 8 de abril, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) já havia interpretado a Lei do Carf de modo restritivo. O órgão entendeu justamente que os benefícios em questão não se aplicariam a casos envolvendo responsabilidade tributária, decadência e direito creditório, bem como às multas isoladas, aduaneiras e moratórias. “O que vemos é que havia uma opinião da PGFN, mas que serviu de base para esta instrução normativa da Receita”, observa.
Diana Piatti Lobo, sócia da área de Tributário do Machado Meyer Advogados, considera que todas essas restrições são indevidas, diante do conteúdo da Lei do Carf. “Existem diversos pontos da IN que podem ser contestados no Judiciário, uma vez eles restringem algo que não foi estabelecido na lei”, avalia Lobo. Ela avalia que apenas um ato de mesma hierarquia, ou seja, outra lei, poderia promover essas alterações.
Por: Cristiane Bonfanti.
Fonte: Jota.