Advogados ouvidos pelo JOTA citam o ‘fato do príncipe’, mas acham remota a chance de aplicação pela Justiça

O presidente Jair Bolsonaro (sem partido) segue resistente à ideia de isolamento horizontal para evitar a disseminação do coronavírus. Na semana passada, chamou a atenção uma fala dele ao questionar as iniciativas de governadores com relação à quarentena. O discurso do presidente citava um artigo da CLT: “tem um artigo na CLT que diz que todo empresário, comerciante etc, que for obrigado a fechar seu estabelecimento por decisão do respectivo chefe do executivo, os encargos trabalhistas, quem paga é o governador e o prefeito, tá ok?”.

A declaração levantou um questionamento: o estado pode ter que arcar com os custos de verbas rescisórias trabalhistas se uma empresa fechar por causa do período em que ficou sem funcionar por conta do coronavírus?
O JOTA ouviu advogados trabalhistas, além de representantes da Justiça do Trabalho e do Ministério Público do Trabalho, para saber se essa possibilidade existe. A avaliação da maioria dos entrevistados é que as circunstâncias que motivaram a paralisação dos estabelecimentos, relacionadas à saúde pública, tiram a força do artigo citado pelo presidente, o 486 da CLT.

O dispositivo define que “no caso de paralisação temporária ou definitiva do trabalho, motivada por ato de autoridade municipal, estadual ou federal, ou pela promulgação de lei ou resolução que impossibilite a continuação da atividade, prevalecerá o pagamento da indenização, que ficará a cargo do governo responsável”. Situações como essa são denominadas como fato do príncipe.

Para Beatriz Tilkian, advogada trabalhista do Gaia Silva Gaede Advogados, a situação de quarentena busca a “defesa do direito coletivo sobre o privado, de proteção à vida”. Por isso, avalia que há pouca chance de sucesso caso alguma empresa venha a quebrar e tente buscar o direito do príncipe.

O tema já chegou ao Judiciário, e no Rio de Janeiro o juiz do trabalho Helio Ricardo Silva Monjardim da Fonseca negou nesta terça-feira (31/3) uma ação civil pública da Procuradoria Regional do Trabalho da 1ª Região que pedia que a União se responsabilizasse pelas indenizações trabalhistas daqueles que forem despedidos por causa da crise.
Na decisão, o magistrado cita o artigo 486 da CLT e o fato do príncipe, e diz que “na hipótese enfrentada a situação em muito se afasta de tal hipótese, quando em verdade estamos diante da chamada força maior”.

A CLT trata , no artigo 502, de termos rescisórios em caso de extinção da empresa por força maior. Nesta situação o empregador pode pagar somente metade da multa de 40% do saldo de FGTS do trabalhador. No entanto, se uma empresa fechar depois da crise do coronavírus, não há garantia de que vá conseguir se enquadrar nos termos desse artigo.

Diante de tantas incertezas, os empregadores aguardam novidades por parte do governo de medidas ligadas à área trabalhista. O governo promete uma Medida Provisória nos próximos dias com regras de redução de jornada e de salários com compensações de um benefício nos moldes do seguro-desemprego.

DEMISSÃO

Segundo advogados consultados pelo JOTA, mesmo motivada pela crise do coronavírus, a demissão de parte dos funcionários deverá seguir todas as regras de rescisão contratual. “Não houve até o momento nenhuma alteração a respeito do abrandamento das regras na hipótese de demissão”, explica Marcos Lemos, sócio da área Trabalhista da Benício Advogados.

“Caso a empresa venha a demitir em razão da redução da sua operação por causa do coronavírus, ela deverá arcar com todos os pagamentos das verbas rescisórias: saldo de salário, aviso prévio, décimo terceiro salário, férias e indenização de 40% sobre os depósitos de FGTS”. Também é preciso obedecer ao prazo previsto na legislação para o pagamento, que é de 10 dias corridos após o encerramento do contrato. “Se o prazo não for respeitado ou se as verbas não forem pagas, o empregador fica sujeito a uma multa no valor de um salário do trabalhador demitido”, complementa Lemos.

Já a discussão sobre o fato do príncipe divide especialistas. O procurador do trabalho e presidente da Associação Nacional do Procuradores do Trabalho, Ângelo Fabiano Farias da Costa, entende que pode haver discussão na Justiça quanto ao tema na demissão de parte dos trabalhadores. “Esse dispositivo se encaixa em situações em que não houve o fechamento definitivo da empresa”, diz. Para o procurador, se a empresa foi obrigada a paralisar as atividades e, em consequência, teve que demitir, pode requerer do governo, seja municipal ou estadual, indenização para o pagamento de verbas rescisórias.

Já o professor de Direito do Trabalho da FMU e organizador do E-book digital “Coronavírus e os Impactos Trabalhistas” Ricardo Calcini avalia que o fato do príncipe não se enquadra nos casos em que a empresa faz demissões parciais. “O fato do príncipe não pode ser invocado quando a empresa resolve despedir alguns empregados em virtude da dificuldade financeira provocada pela paralisação”, afirma. “Há que gerar situação de encerramento irreversível da atividade econômica. Logo, deve ser analisado, caso a caso, se a situação do coronavírus impediu efetivamente a continuidade da empresa por ato governamental.”

O entendimento predominante entre os advogados trabalhistas ouvidos pela reportagem do JOTA é que a suspensão temporária de algumas atividades empresariais não caracteriza fato do príncipe, previsto no artigo 486 da CLT.
“É a defesa do direito coletivo sobre o privado, de proteção à vida. E isto afastaria a hipótese prevista no 486 da CLT, que se aplica aos casos em que o poder público proíbe a exploração da atividade empresarial”, avalia a advogada trabalhista Beatriz Tilkian.

A presidente da Anamatra, Noemia Garcia Porto, também defende que não está caracterizado o fato do príncipe “quando a observância aos atos do poder público torne a execução do contrato mais onerosa”.
Mesmo se o fato do príncipe for levado em consideração, segundo Marcos Lemos, sócio da área trabalhista da Benício Advogados, o empregador ainda assim terá que arcar com boa parte das verbas rescisórias. “A única verba a ser arcada pelo estado seria a multa indenizatória de 40% sobre o valor depositado no FGTS. As demais verbas rescisórias continuariam a ser pagas pelo empregador”, explica. “Mas quando o Judiciário apreciar essas questões, tenderá a considerar que o 486 da CLT não é aplicável a essa situação”, diz. “O ato governamental de quarentena em alguns estados, e a consequente paralisação de atividades, é um ato justificado ante o surto do coronavírus”.

Se o poder público tivesse optado em manter os estabelecimentos abertos, correria outro risco, o de responsabilização por omissão. “A responsabilização do estado por omissão acontece se o Estado deixar de fazer algo diante de um dever legal de impedir a ocorrência de um dano”, explica Felipe Estefam, especialista em direito público do escritório Souza, Mello e Torres Advogados.

EXTINÇÃO

A empresa que fechar por causa da crise pode tentar fazer o pagamento das verbas rescisórias com base no artigo 502 da CLT, que trata de regras de extinção do estabelecimento por motivo de força maior.
“Em razão da força maior, a CLT autoriza o pagamento da multa do FGTS pela metade nos casos em que houver a extinção da empresa”, diz Beatriz Tilkian. “A lei não exclui o pagamento de aviso prévio e das verbas rescisórias devidas em caso de força maior”.

O sócio da área trabalhista da Dias Carneiro Advogados, André de Melo Ribeiro, alerta que ao alegar fechamento por força maior é preciso deixar muito claro como a atividade da empresa foi atingida de forma direta. “No caso do coronavírus, há a necessidade de demonstrar o ato do poder público que impediu a atividade, não que dificultou a atividade”. Para facilitar o entendimento, Ribeiro usa um exemplo figurativo: “não interessa você demonstrar que apareceu o Godzilla no Brasil. Precisa mostrar que o Godzilla pisou na sua fábrica e você não tem mais como trabalhar”.

COMPASSO DE ESPERA

O relato dos mesmos advogados é que a maior parte das empresas, por ora, está em compasso de espera antes de decidir se vai realizar cortes.

“Demitir custa caro. Por isso, alguns clientes estão preferindo deixar os funcionários em casa e aguardam novas medidas por parte do governo”, diz Decio Daidone Júnior, advogado trabalhista e sócio do escritório ASBZ Advogados. “Também há casos em que houve acordo coletivo nas demissões, com o pagamento das verbas rescisórias de forma parcelada”.

O quadro é o mesmo entre os clientes de Daniela Yuassa, advogada trabalhista do Stocche Forbes Advogados: “ainda não trabalhei com nenhuma demissão, todos estão estudando possibilidades para reduzir salários ou suspender contratos, por isso há uma expectativa pela Medida Provisória que vai tratar do tema”.

O governo vem prometendo editar nos próximos dias uma Medida Provisória com permissão para reduzir a jornada e o salário dos trabalhadores. Parte das compensações nos vencimentos serão arcadas por um benefício nos moldes do salário-desemprego, sendo que nenhum trabalhador vai receber menos que um salário mínimo e haverá um teto no benefício. Até agora, porém, o governo não revelou qual será esse valor máximo.

 

POR ÉRICO OYAMA

FONTE: JOTA PRO– 1/4/2020