A controvérsia pode ser mais bem compreendida quando o histórico das mudanças é resgatado. É o que pretendemos com este breve artigo, ainda que estejamos longe de esgotar o tema.
Como amplamente divulgado nos últimos meses, os contribuintes têm sido desafiados com constantes alterações no Imposto sobre Produtos Industrializados (“IPI”), promovidas tanto por iniciativas do Governo Federal quanto por decisões na esfera judicial.
A controvérsia pode ser mais bem compreendida quando o histórico das mudanças é resgatado. É o que pretendemos com este breve artigo, ainda que estejamos longe de esgotar o tema.
Como sabemos, o Brasil é membro do Mercado Comum do Sul (“MERCOSUL”), bloco econômico criado em 1991 com o intuito de aumentar a oferta de emprego e renda, melhorar a produtividade e intensificar as relações econômicas entre os países participantes.
Intentando alcançar seus objetivos, em 1995 foi estabelecida pelo MERCOSUL a Tarifa Externa Comum (“TEC”), que constitui um conjunto de tarifas sobre a importação, aplicável a todos os países-membros do grupo, com base na Nomenclatura Comum do Mercosul (“NCM”) para produtos e serviços.
Ocorre que, em outubro de 2021, o Grupo Mercado Comum (“GCM” – órgão executivo do MERCOSUL, cuja finalidade é tomar as providências necessárias para o cumprimento das decisões adotadas pelo grupo) aprovou e publicou a Resolução Mercosul/GCM 16/21, que promove alterações na referida TEC.
Essa Resolução foi internalizada por diversos países-membros, entre eles o Brasil, por meio da Resolução GECEX¹ 272/21, cuja vigência estava prevista para iniciar em 1/4/21.
Em vista dessas alterações da NCM e da TEC, em dezembro de 2021 foi publicado o decreto 10.923/21, que atualizou a Tabela de Incidência do IPI (“TIPI”), para ajustá-la às novas classificações firmadas pelo MERCOSUL, cuja vigência também estava prevista para iniciar em 1/4/22. Neste ponto, vale ressaltar que a TIPI anterior foi instituída em 2016, pelo decreto 8.950/16.
Por diversas razões que escapam ao espectro meramente tributário, o Governo Federal publicou o decreto 10.979/22, que reduziu em 25% as alíquotas do IPI incidentes sobre todos os produtos, exceto veículos (redução de 18,5%) e cigarros (que não sofreram redução), cujos efeitos, atrelados à TIPI anterior (de 2016), iniciariam no dia 25/2/22.
Naquele momento, então, havia duas TIPIs publicadas – a vigente, instituída em 2016, e a nova, aguardando até o início de abril para começar a produzir efeitos.
No final de março de 2022, foi publicado um novo decreto, de 11.021/22, que prorrogou os efeitos da TIPI anterior de 2016, até o final de abril. Na época, a medida garantiu a manutenção da redução do IPI em 25%, o que, esperava-se, evitaria a judicialização do tema. Por outro lado, gerou inconsistências entre as mudanças da NCM e a TIPI.
Esse contexto levou a Receita Federal do Brasil (“RFB”) a se manifestar, informando que a vigência da Resolução GECEX 272/21 (que alterou a TEC e a NCM) seria mantida e publicando o Ato Declaratório Executivo 2/22, para determinar as alíquotas de IPI incidentes sobre os produtos com as novas NCMs instituídas.
Em abril de 2022, o Governo Federal publicou o decreto 11.055/22, que estabeleceu a até então mais recente e atualizada TIPI, tendo ampliado a redução do IPI em até 35%, com poucas exceções – essencialmente produtos da Zona Franca de Manaus (“ZFM”), cuja redução permaneceu em 25%, com efeitos a partir de 1/05/22.
Ainda, foi publicado o decreto 11.052/22, que reduziu a 0% o IPI sobre preparações compostas não alcóolicas, insumo utilizado na fabricação de refrigerantes – um dos principais produtos comercializados a partir da ZFM.
Este cenário desagradou o Estado do Amazonas e as empresas instaladas na ZFM, pois alegou-se que diminuiriam sua competitividade no mercado. Neste contexto, em maio de 2022 foi distribuída, pelo Partido Solidariedade, a Ação Direta de Inconstitucionalidade 7.153 (“ADIn 7.153”), em que foi pleiteado liminarmente a suspensão dos efeitos dos decretos 11.052/22, 11.047/22 e 11.055/22.
Foi, então, concedida a medida liminar em 06/05/22, para o fim de suspender os efeitos dos citados decretos, especificamente para os itens produzidos pelas indústrias da ZFM e que possuam Processo Produtivo Básico (“PPB”).
Ocorre que referida decisão, na forma como proferida, é ilíquida e inexequível, uma vez que não existe um rol fixo, confiável e claramente conhecido dos produtos fabricados na ZFM e que sejam detentores de PPBs ativos. Em vista disso, foram protocoladas petições na ação, pedindo que o Ministério da Economia publicasse uma relação dos PPBs existentes na região, com os produtos efetivamente em produção.
Neste contexto, a Advocacia Geral da União (“AGU”) interpôs agravo regimental, defendendo a redução do IPI, por não impactar todos os benefícios da ZFM, tendo em vista que o imposto federal não é o único tributo desonerado na região. Ainda, defendeu que o critério da existência de “PPB” como qualificador dos produtos originados na ZFM não é o mais adequado, pois pode indicar uma representatividade ínfima em relação aos produtos originados da região.
A solução encontrada pela Administração Pública foi tentar identificar 65 itens da NCMs que, juntos, representariam 95% do faturamento total da ZFM. A lista com os ditos itens da NCMs foi publicada em maio deste ano, por meio da Nota Técnica SEI 22.223/22.
Por fim, no final de julho de 2022 foi publicado o decreto 11.158/22, que institui uma nova TIPI. De acordo com o Ministério da Economia, o objetivo da nova publicação seria conferir maior segurança jurídica ao setor produtivo e pôr fim à lide judicial travada com as indústrias sediadas na ZFM.
O novo decreto entrou em vigor na data de sua publicação (29/07/22) e conferiu redução do IPI incidente sobre a maioria dos produtos, exceto para os industrializados na ZFM – para estes, foram criados destaques tarifários (“ex”), apontando mais assertivamente os itens cujas alíquotas não sofreram reduções.
Contudo, no início de agosto de 2022, a medida cautelar proferida na ADIn 7.153 foi estendida para suspender os efeitos do decreto 11.158/22, que trouxe a nova TIPI. Em resumo, foram mantidas as razões de decidir que fundamentaram a suspensão dos decretos 11.052 e 11.055, salientando que, apesar de a redução do IPI não atingir diversos produtos da ZFM, o novo Decreto teria reduzido também o IPI de centenas de outros produtos fabricados naquela região.
Em outras palavras, houve um retrocesso ao estágio existente em maio – com uma decisão judicial inexequível, e a incerteza de como praticar a tributação pelo IPI em diversos produtos.
No mais recente capítulo desta saga, o Governo Federal publicou, na tarde de 24/08, o decreto 11.182/22, promovendo novas alterações nas alíquotas do IPI constantes da TIPI recentemente aprovada pelo decreto 11.158/22.
O novo decreto mantém as alíquotas do imposto sem redução para mais 107 produtos fabricados na ZFM, somando-se aos outros já listados no decreto 11.158/22. Além disso, foi criado o desdobramento efetuado sob forma de destaque “ex”, com alíquota zero do imposto, para produtos classificados na NCM com o código 2202.99.00 (bebidas alimentares à base ou elaboradas a partir de matérias-primas vegetais).
Em meio a este cenário kafkaniano, encontram-se os contribuintes, empresas do setor produtivo, que precisaram revisitar seus parâmetros fiscais do dia para a noite, por diversas vezes apenas este ano.
A realidade, de extrema insegurança jurídica, põe em risco, além da atratividade do Brasil como polo de investimentos, o próprio exercício da atividade econômica das empresas, bem como seu compliance com as obrigações tributárias, principais e acessórias.
Como em um grande enredo ainda em andamento, aguardamos eventual manifestação do STF, nos autos da ADIn 7.153, sobre o novo decreto publicado no último mês.
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¹ O Comitê-Executivo de Gestão (“GECEX”) é o núcleo colegiado da Câmara do Comércio Exterior (“CAMEX”).
*Artigo publicado originalmente no Migalhas.