Antigas ilegalidades ainda são utilizadas como meio de coagir os contribuintes ao recolhimento dos tributos aduaneiros
Em meio às diversas discussões tributárias que ainda rondam as empresas de navegação, um tema antigo voltou ao centro das discussões, trazendo dificuldades ao setor: a aplicação da isenção do Imposto de Importação e do IPI sobre as importações de partes, peças e componentes destinados ao reparo, revisão e manutenção de embarcações, prevista na lei 8.032/90.
Como se sabe, a referida lei é de suma importância para os armadores que operam embarcações próprias ou afretadas, nacionais ou estrangeiras, especialmente para os casos que não se inserem no REB (Registro Especial Brasileiro). Isso porque, as embarcações que possuem tal registro gozam de regime fiscal específico para a aquisição de partes e peças, inclusive mais benéfico, contemplando a alíquota zero para as contribuições PIS e COFINS incidentes na importação. A título exemplificativo, inserem-se no contexto das embarcações não abrangidas pelo REB, e que, portanto, precisam fazer uso da isenção prevista na lei 8.032/90, as sondas semissubmersíveis, os FPSO, os navios-sonda, as embarcações de engenharia etc.
No que se refere ao alcance da desoneração trazida pela referida lei, nota-se que o legislador não impôs aos contribuintes qualquer requisito de ordem pessoal, preferindo conferir a isenção diretamente aos bens, ou seja, às partes, peças e componentes destinados ao reparo, revisão e manutenção de embarcações. Tal destinação é o único requisito jurídico a ser observado para a aplicação da desoneração, o qual, inclusive, somente pode ser atestado, por óbvio, em momento posterior ao desembaraço aduaneiro.
Em evidente extrapolação ilegal desse limite, o Regulamento Aduaneiro exige o atendimento a outro requisito para se fazer jus à isenção, consubstanciado na comprovação da posse ou da propriedade, pelo importador, da embarcação beneficiada pelas partes importadas.
Embora essa condição, via de regra, seja de fácil atendimento pelas empresas – afinal as importações de partes e peças são usualmente realizadas pelos possuidores ou pelos proprietários das embarcações -, não são raros os casos em que as autoridades fiscais exigem essa comprovação em meio ao procedimento de desembaraço aduaneiro, gerando custos extras decorrentes do alongamento temporal necessário ao atendimento. Muito pior, há casos em que o total desconhecimento da documentação regulatória emitida pelas autoridades competentes, notadamente a Marinha do Brasil e a ANTAQ, impede a correta aferição, pela autoridade fiscal, da posse da embarcação, e medidas judiciais, sempre elas, precisam ser manejadas para sanar o problema.
Esse aspecto, contudo, não é o único que permanece sendo enfrentado pelos importadores, mesmo se tratando de uma legislação madura, vigente desde 1990. Entre os percalços, há diversos casos de importações inadmitidas sob o argumento de que deveriam ser atendidos, para fruição da isenção específica trazida pela lei 8.032/90, os requisitos gerais de importações desoneradas, a exemplo da emissão do (extinto) Certificado de Liberação de Carga Prescrita à Bandeira Brasileira, da comprovação de ausência de similar nacional e da apresentação de certidão de quitação de tributos federais.
De acordo com o regramento do Código Tributário Nacional, os benefícios fiscais específicos, ou seja, aqueles instituídos por legislação especial, devem se ater aos requisitos de fruição que lhe são próprios, não se submetendo aos requisitos previstos na legislação geral. É dizer, no caso em análise, que todas as exigências que ultrapassem a simples comprovação do uso efetivo das partes e peças nas embarcações beneficiadas serão ilegais, ao passo em que correspondem a elementos condicionantes não previstos na legislação especial de instituição do benefício. Além da doutrina, vemos os julgados existentes sobre o tema acolherem essa lógica com absoluta tranquilidade.
Mas as restrições não param por aí, e os importadores também se veem obrigados a recorrer ao Poder Judiciário para afastar outras negativas injustificadas, como, por exemplo, a alegação de que as plataformas e os FPSO não se enquadram no conceito de “embarcação”, motivo pelo qual a isenção não se aplicaria à aquisição de suas partes e peças.
Nesse particular, nunca é demais lembrar que a própria Receita Federal já reconheceu o enquadramento das plataformas como embarcações, inclusive por meio de Solução de Consulta. Posteriormente, a lei 9.481/97, com a modificação que lhe foi introduzida pela lei 13.043/14, passou a equiparar os conceitos de forma expressa, não deixando qualquer dúvida sobre o tema. Trata-se de mais uma discussão, há muito, ultrapassada.
Em suma, embora as diversas questões enfrentadas pelos contribuintes possuam claro endereçamento doutrinário e jurisprudencial favorável às suas pretensões, fato é que a lei 8.032/90, ainda traz injustificada resistência das autoridades fiscais à sua plena aplicação, resultando em custosos atrasos no desembaraço aduaneiro, decorrentes não apenas da própria indisponibilidade do material, como também do caríssimo armazenamento ao qual se submetem os bens. Agravando esse cenário, os canais de desembaraço, sempre diferentes do “verde”, são ordinariamente processados pela Receita Federal.
A título de esclarecimento sobre a cor do canal de desembaraço, sabe-se que o sistema Siscomex exige dos importadores que mencionem, em campo específico da Declaração de Importação, a existência de medida judicial capaz de influenciar no desembaraço. Assim, informada a existência de medida judicial, o próprio sistema parametriza o procedimento para um canal diferente do verde, impedindo, portanto, o desembaraço automático para exigir do importador, ao menos, conferência documental. E lá se vão muitos dias.
E a sordidez do sistema aparece nesse momento, pois aos contribuintes restam duas alternativas: ou se ajuíza uma medida judicial prévia ao desembaraço, para afastar as ilegalidades, sabendo que nesse caso haverá parametrização da importação para um canal de conferência diverso do “verde”, acarretando maior demora na liberação dos bens, ou se arrisca a importação sem recorrer ao Poder Judiciário, na tentativa de acelerar o desembaraço, mas sabendo-se que, nesse caso, a oposição de exigências resultará na judicialização incidental da discussão, o que tende a ser ainda mais demorado.
Assim, não são raros os casos em que, diante da premência na liberação das partes e peças, ou sob o risco de se submeterem a um pesado custo de armazenagem, as empresas operadoras das embarcações optam uma terceira via, ainda mais lamentável, refletida no recolhimento dos tributos, cedendo às ilegais exigências, para posterior recuperação dos valores, novamente pela via judicial.
Eis o sistema, se valendo de antigas e ultrapassadas ilegalidades, para permanecer coagindo os contribuintes ao recolhimento de tributos.
*Artigo publicado originalmente no Migalhas.