Tempo de publicação de acórdãos pode estar por trás da ausência de pagamentos; Fazenda espera arrecadar R$ 55,6 bi.
A demora do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) na publicação de acórdãos e na inclusão de processos em pauta pode ser um obstáculo ao cumprimento da meta de arrecadação de R$ 55,6 bilhões com o pagamento de débitos mantidos por voto de qualidade no tribunal.
No final de junho, a Receita informou que nenhum contribuinte demonstrou interesse pela forma de recolhimento, e o motivo pode estar no fato de a legislação permitir o pagamento sem juros dos débitos resolvidos por qualidade até 90 dias após decisão definitiva no conselho. Tributaristas estimam que mesmo pessoas físicas e jurídicas com casos analisados no ano passado ainda podem estar dentro do prazo para fazer essa escolha.
O cumprimento integral da meta, entretanto, é visto como difícil, e até mesmo integrantes da Fazenda consideram improvável a arrecadação dos R$ 55,6 bilhões, ainda que não se saiba se haverá alguma revisão dessa estimativa já no próximo relatório bimestral de receitas e despesas. O cenário de adesão zero, porém, deve ser alterado. Ao JOTA, dois advogados narraram terem clientes interessados em recolher os tributos sem recorrer à Justiça. Um deles afirmou que chegou a formalizar dois requerimentos, mas encontrou restrições por parte da Receita. Apesar de a meta parecer cada vez mais ambiciosa, a medida tem potencial de arrecadação relevante, que deve começar a se materializar mais claramente neste segundo semestre.
A possibilidade de pagamento em condições mais vantajosas consta no artigo 2º da Lei 14.689/23, a Lei do Carf. O dispositivo altera o Decreto 70.235/72 para prever que, nos casos de decisão por voto de qualidade, caem as multas e as representações fiscais para fins penais aplicadas contra os contribuintes. Ainda, caso haja manifestação de interesse de pagamento do valor em até 90 dias, serão excluídos também os juros, e o contribuinte poderá pagar o débito em até 12 vezes, com a possibilidade de utilização de prejuízo fiscal e base negativa de CSLL. Neste caso, entretanto, o litígio é resolvido, e não há a possibilidade de recurso à Justiça.
O tema voltou à tona depois de, no final de junho, o chefe do Centro de Estudos Tributários e Aduaneiros da Receita Federal, Claudemir Malaquias, dizer que, apesar de a possibilidade estar aberta desde setembro do ano passado, nenhuma pessoa física ou jurídica se interessou por fazer o pagamento.
Pouca vantagem em desistir da Justiça
O atingimento da meta bilionária é visto com ceticismo até mesmo por integrantes da Fazenda. Ao JOTA, um membro da pasta disse duvidar que 5% dos R$ 55,6 bilhões sejam arrecadados. O integrante atribui o baixo interesse pela modalidade à pouca diferença financeira entre pagar o débito após um voto de qualidade ou recorrer à Justiça. Isso porque, como as multas são derrubadas de qualquer forma, uma das únicas vantagens de recolher sem recorrer à Justiça é a de não arcar com os juros.
“Considerando que o tema decidido em voto de qualidade tende a ser controvertido, a decisão de judicializar é mais que natural”, afirmou a fonte, destacando que, em caso de empresas com capacidade de pagamento, a Lei 14.689 permite a não apresentação de garantias para recorrer ao Judiciário.
A única forma de cumprimento da meta, para o integrante da Fazenda, seria a volta das multas e encargos em caso de não pagamento do débito pelo contribuinte após o voto de qualidade. Nestes casos, de fato, a pessoa física ou jurídica estaria frente a uma situação de “pegar ou largar”.
Possibilidade de arrecadação, mas inferior aos R$ 55 bi
Tributaristas que atuam no Carf e integrantes do tribunal, entretanto, não acreditam no fracasso retumbante do disposto na Lei 14.689.
O advogado João Colussi, do Mattos Filho, diz que possui um cliente interessado em pagar o valor relacionado a um processo decidido pelo Carf com os benefícios da legislação, e que deve recolher o valor aos cofres públicos em breve. Segundo o tributarista, o motivo para a inexistência de pagamentos até agora pode estar no próprio texto da Lei 14.689, que prevê que o prazo é de 90 dias para casos resolvidos “definitivamente a favor da Fazenda Pública pelo voto de qualidade”.
Isso significa que mesmo após uma decisão por voto de qualidade, o prazo para pagamento só começa a valer após o julgamento dos embargos de declaração, se houver. Além disso, como temas resolvidos pela metodologia, em geral, são polêmicos no conselho, em muitos casos há demora na publicação do acórdão.
A relação entre a publicação da decisão e o fim do processo se dá pelo fato de as partes somente serem notificadas após a disponibilização do acórdão. Ou seja, quanto maior o prazo até a publicação, maior o tempo de tramitação do caso.
No Carf, o prazo até a publicação do acórdão pode ser de meses. O Santander, por exemplo, teve um caso decidido por voto de qualidade em 19 de março (16327.720596/2013-48), mas o acórdão foi publicado apenas em 17 de junho. A BRF, por sua vez, teve um processo decidido por voto de qualidade em 22 de fevereiro (11516.722941/2013-37), porém até hoje a decisão não foi divulgada.
Já o advogado Frederico Rodrigues da Cunha, sócio do Gaia Silva Gaede Advogados, diz que fez dois requerimentos para o pagamento de valores após derrotas por voto de qualidade, porém em ambos encontrou restrições por parte da Receita.
O primeiro caso envolve uma empresa privada do setor de energia elétrica, que pagou mais de R$ 1 milhão em Imposto de Renda Pessoa Jurídica (IRPJ) e Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL). “Considerando que o tema em discussão aponta um panorama mais desfavorável aos contribuintes nas discussões judiciais, a empresa optou por quitar o débito com os benefícios previstos na Lei 14.689/23”, diz.
Neste caso, a empresa conseguiu a derrubada dos juros e das multas, porém, como o pagamento foi feito no mês seguinte ao de emissão da guia de recolhimento, a Receita cobrou os juros correspondentes ao período. Cunha considera o procedimento irregular, já que, mesmo pagando no mês seguinte ao de emissão da guia, a companhia ainda estava no prazo de 90 dias previsto na Lei 14.689. “A empresa foi compelida a pagar esta parcela de juros, sob pena de perda dos benefícios legais”, afirmou.
O segundo caso envolve uma empresa do setor alimentício, que requereu o pagamento de débitos superiores a R$ 20 milhões com prejuízo fiscal e base negativa de CSLL. A Receita, entretanto, não permitiu a derrubada das multas, sob a alegação de que o processo foi decidido por voto de qualidade antes da edição da Lei do Carf. A queda dos juros foi deferida, porém, segundo Cunha, até hoje não houve resposta ao pedido de pagamento.
Empresas têm feito cálculos
Advogados que defendem companhias no Carf apontam que os contribuintes têm feito um cálculo ao decidirem sobre a possibilidade de pagar após a decisão por voto de qualidade. Se por um lado, em caso de derrota na Justiça, é necessário pagar os juros, por outro é colocado na balança o fato de que muitos dos temas com empate na esfera administrativa não têm jurisprudência pacificada no Judiciário.
“O empate é um indicativo da viabilidade jurídica da discussão e aponta para um cenário em que a chance de vitória total existe”, diz a advogada Diana Piatti Lobo, sócia do Machado Meyer Advogados.
O advogado Felipe Kneipp Salomon, sócio do Levy & Salomão, ainda salienta que, de acordo com a Lei 14.689, o contribuinte com capacidade de pagamento pode recorrer ao Judiciário sem a apresentação de garantias. O tributarista destaca, entretanto, que o dispositivo ainda não foi regulamentado pelo Ministério da Fazenda.
Há, ainda, quem acredite que a meta pode ser totalmente cumprida. Um integrante do Carf consultado pelo JOTA afirmou que considera “factível” o valor de R$ 55,6 bilhões.
Votos de qualidade são minoria no Carf
Outro elemento importante nesta equação é o perfil dos casos resolvidos por voto de qualidade. Historicamente, há empate na minoria dos processos no Carf, porém a metodologia é aplicada em casos de alto valor.
Um levantamento feito pelo JOTA mostra que, entre janeiro e junho de 2024, 73 processos foram resolvidos total ou parcialmente por voto de qualidade na Câmara Superior do Carf, instância máxima do conselho. No rol de partes com casos decididos desta forma, porém, estão grandes companhias, como Ambev, Marfrig, P&G, Unilever, BTG Pactual, Arcelormittal, Gerdau, Arcos Dourados e Avon.
De acordo com dados divulgados pelo próprio conselho, entre janeiro e abril de 2024 3,9% dos casos julgados foram resolvidos por voto de qualidade. Em 85,2% dos processos a decisão foi unânime, e em 10,9% o entendimento se deu por maioria.
Por: Bárbara Mengardo.
Fonte: Jota