A questão da modulação dos efeitos do novo entendimento do STF ainda se encontra bastante controvertida, o que indubitavelmente gera grande instabilidade e insegurança jurídica.
Como sabido, o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do Recurso Extraordinário 1.072.485 (tema 985), afetado pela sistemática da repercussão geral, reconheceu a constitucionalidade da inclusão das verbas pagas a título de terço de férias na base de cálculo das contribuições previdenciárias. Tal posicionamento, entretanto, afronta o princípio da segurança jurídica, o princípio da confiança e da estabilidade das decisões judiciais.
Deveras, há muito os contribuintes deixam de recolher a contribuição previdenciária supostamente incidente sobre o terço constitucional pautando-se no entendimento firmado pelo STJ quando do julgamento do Recurso Especial 1.230.957/RS (Tema n° 479), bem como na jurisprudência consolidada do próprio STF que há mais de 10 anos já vinha se posicionando em diversas oportunidades nesse mesmo sentido, a título exemplificativo citem-se os seguintes julgamentos: RE 587.941, rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22/11/08; AI 603.537, rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 30/03/07; AI 712.880, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 19/06/09; RE 593.068, rel. Min Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 21/03/19, esse último submetido à Repercussão Geral – Tema 163¹.
Inclusive não está demais rememorar que o STF por muito tempo se posicionou no sentido de que a competência para a análise da natureza das verbas que deveriam ou não integrar a base de cálculo das contribuições previdenciárias era infraconstitucional, podendo ser exercida apenas pelo STJ – ou seja, também por este ângulo é possível verificar que o novo posicionamento do STF representa uma mudança abrupta do seu entendimento. Competência esta, inclusive, que foi bem exercida em sede de recurso repetitivo, conforme já apontado em linhas anteriores.
Alguns contribuintes, até mesmo, deixaram de recolher as contribuições sem nem mesmo ter ajuizado ação judicial específica para obter provimento jurisdicional nesse sentido, confiando no julgamento do STJ proferido em sede de recurso repetitivo e na jurisprudência até então consolidada do STF.
Ademais, não se pode desconsiderar que há diversas decisões transitadas em julgado reconhecendo o direito de diversos contribuintes de não incluir a referida verba na base de cálculo da contribuição previdenciária, as quais, agora, contrariam o atual entendimento do STF, gerando grande instabilidade e insegurança jurídica.
Diante desse cenário a discussão acerca da necessidade e da importância da modulação dos efeitos do entendimento externado no RE 1.072.485, se torna relevantíssima.
Isso porque, a referida decisão, ao fixar a tese de que “é legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”, não delimita a partir de que momento gerará efeitos, ou seja, se poderá retroagir no tempo para a cobrança da contribuição referente aos cinco anos anteriores à prolação da decisão, se ocorrerá a relativização da coisa julga a fim de abarcar o direito já reconhecido e vinculado em ações já transitadas em julgado antes do julgamento pelo STF, ou se os seus efeitos serão aplicados apenas para eventos futuros.
Vale lembrar, a propósito, que de acordo com a teoria da norma inconstitucional, aquela que tenha assim sido considerada ostenta essa condição desde a sua promulgação, razão pela qual, os efeitos da inconstitucionalidade alcançam todos os eventos desde o seu nascedouro.
A esse respeito, cumpre observar que o Ministro Marco Aurélio em diversas ocasiões já externou entendimento quanto aos efeitos retroativos da decisão que reconhece a inconstitucionalidade de determinada lei. Cite-se a título de exemplo o voto proferido no RE 1.236.916² e na ADI 4788³.
Assim sendo, a todo rigor, atualmente, é possível que a Receita Federal do Brasil exija o pagamento das contribuições que deixaram de ser recolhidas nos últimos cinco anos, bem como aquelas que seriam devidas a partir do julgamento do recurso representativo da controvérsia, inclusive desconsiderando totalmente as sentenças que já transitaram em julgado a favor do contribuinte, uma vez que o STF não estabeleceu nenhum marco temporal quando do julgamento da repercussão geral.
Nesse passo, não se pode olvidar que o Estado de Direito deve possibilitar à sociedade a confiança de que atos praticados em observância ao direito vigente – neste caso, a jurisprudência até então sedimentada em razão do entendimento externado pelo STJ em sede de recurso repetitivo e a existência de decisões, já transitadas em julgado, que reconheceram a ilegalidade da inclusão do terço constitucional de férias na base de cálculo das contribuições previdenciárias – serão respeitados, dando-lhes a segurança de prever a consequência de seus atos futuros e fazer sólidos planejamentos financeiros.
Nesse viés, é sabido que o art. 27 da lei 9.868/99 e o art. 11 da lei nº 9.882/99, estabelecem a possibilidade da modulação dos efeitos das decisões, em observância à segurança jurídica, apenas quando há o reconhecimento de inconstitucionalidade pelo STF.
Entretanto, com a promulgação do CPC/15⁴, as hipóteses de modulação dos efeitos das decisões judiciais foram ampliadas, podendo ser aplicadas também nos casos em que haja alteração da jurisprudência pacífica dos Tribunais Superiores. Trata-se, pois, justamente da situação ocorrida com o julgamento do recurso representativo da controvérsia pelo STF, por meio do qual se alterou o entendimento já pacificado com relação à impossibilidade de inclusão das verbas pagas a título de terço constitucional de férias na base de cálculo das contribuições previdenciárias.
Quanto à necessidade de modulação dos efeitos das decisões frente à segurança jurídica, a Ministra Carmen Lúcia, no julgamento do RE 377.457, de forma clara e precisa asseverou que “a ideia de modular efeitos deve ter alguns parâmetros que a jurisprudência, ao longo do tempo, haverá de fixar. Penso que haverá de ser demonstrada a excepcionalidade da situação, a possiblidade de insegurança jurídica, quando se encaminhava a sociedade a acreditar numa jurisprudência num determinado sentido”.
Não há dúvidas de que na situação sob análise, a sociedade foi submetida a uma completa insegurança jurídica, haja vista a mudança brusca da jurisprudência até então dominante, o que vem se perpetuando há quase dois anos, uma vez que até o presente momento a Corte Suprema não se manifestou acerca da eventual modulação dos efeitos do entendimento fixado no recurso representativo da controvérsia.
Desta feita, a fim de resguardar os contribuintes que confiaram e organizaram as suas atividades nos termos da jurisprudência que havia sido estratificada pelo STJ, é essencial que o STF module os efeitos da decisão que declarou a constitucionalidade da inclusão das verbas pagas a título de terço de férias na base de cálculo das contribuições previdenciárias, conferindo efeitos prospectivos à decisão que reputou constitucional tal incidência, em observância ao primado da confiança, da segurança jurídica e do princípio da estabilidade das decisões judiciais, este último tão privilegiado no novo Código de Processo Civil.
Não é demais rememorar que o STF, em outras situações em que houve mudança jurisprudencial de forma contrária à Fazenda Pública, já modulou os efeitos da decisão, a fim de resguardar os cofres públicos, como é o caso da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, em que foram utilizados argumentos meramente econômicos para se justificar a referida modulação naqueles autos.
Ou seja, é evidente que no presente caso não se pode deixar levar em conta também os danos financeiros que a mudança abrupta do entendimento do STF poderá causar aos contribuintes, caso não venha ser modulada.
Inclusive, o Ministro Edson Fachin, em recentíssima decisão proferida, em 1/2/22, nos autos da Medida Cautelar 10.156/SP, ao conceder a tutela de urgência requerida naqueles autos, reconheceu expressamente a necessidade de modulação dos efeitos do entendimento fixado no Tema 985 em razão da abrupta mudança na jurisprudência até então dominante, ao asseverar que “(…) é de se reconhecer que, até o julgamento do Tema 985, a jurisprudência do STJ, corroborada por competência atribuída pelo próprio STF, sedimentou, por praticamente dez anos, orientação contrária ao entendimento recentemente adotado por esta Corte, no julgamento do paradigma da repercussão geral, a justificar provável atribuição de eficácia prospectiva ao novo pronunciamento, em respeito à segurança jurídica e ao interesse social. Aliás, é o que se observa do pronunciamento de pelo menos cinco ministros do Tribunal, no julgamento virtual dos embargos de declaração opostos nesse sentido.”
Muito embora não restem dúvidas acerca da necessidade de modulação dos efeitos do entendimento do STF, mister se faz destacar que o Ministro Marco Aurélio, no plenário virtual em que havia se iniciado o julgamento dos embargos de declaração, votou de forma contrária à referida modulação, no que foi acompanhado pelos Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Alexandre de Moraes.
Por outro lado, os Ministros Luís Roberto Barroso, Dias Toffoli, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Edson Fachin acertadamente se posicionaram de forma favorável, a fim de que os efeitos da decisão ocorressem apenas a partir da publicação do acórdão de mérito, ressalvadas àquelas contribuições já pagas e que não foram objeto de questionamento perante o Poder Judiciário.
No entanto, referido julgamento foi suspenso após o pedido de destaque pelo Ministro Luiz Fux, sendo que, em razão de tal fato, todos os votos anteriormente proferidos deveriam ser desconsiderados. Contudo, o STF, ao julgar a questão de ordem nos autos da ADI 5399, entendeu que o voto proferido em plenário virtual por ministro aposentado deve ser considerado quando do reinício do julgamento em Plenário Presencial. Ou seja, caso essa definição venha a ser confirmada, o julgamento dos Embargos de Declaração acerca da modulação dos feitos contará com o voto do Ministro Marco Aurélio e que, como já apontado anteriormente, votou de forma contrária a modulação dos efeitos.
Nesse passo, como se vê, a questão da modulação dos efeitos do novo entendimento do STF ainda se encontra bastante controvertida, o que indubitavelmente gera grande instabilidade e insegurança jurídica.
Portanto, considerando que a decisão em comento representa grande impacto financeiro para os contribuintes por afetar diretamente o seu fluxo de caixa, além da insegurança jurídica que representa, não restam dúvidas quanto ao fato de que é primordial que o Supremo Tribunal Federal priorize o julgamento dos embargos de declaração opostos no Recurso Extraordinário 1.072.485 (tema 985), a fim de que a questão da modulação dos efeitos do entendimento fixado naqueles autos seja prontamente analisada, de modo a garantir o direito dos contribuintes, em observância ao princípio da confiança legítima e à segurança jurídica.
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¹ Não se nega o fato de que parte dos julgamentos mencionados se referem à contribuição previdenciária do servidor público, mas como bem apontado pelo Min. Mauro Campbell Marques, relator do REsp 1.230.957/RS, “não se justifica a adoção de entendimento diverso em relação aos trabalhadores sujeitos ao Regime Geral da Previdência Social. Isso porque o entendimento do Supremo Tribunal Federal ampara-se, sobretudo, nos arts. 7º, XVII, e 201, § 11, da CF/88, sendo que este último preceito constitucional estabelece regra específica do Regime Geral da Previdência Social”.
² Divirjo parcialmente do Relator, quanto à modulação dos efeitos da decisão. Eis a denominada inconstitucionalidade útil. Praticamente aposta-se na morosidade da Justiça. Proclamado o conflito da norma com a Constituição Federal, mitiga-se esta sob o ângulo da higidez, como se não estivesse em vigor até então, e assenta-se, como termo inicial do surgimento de efeitos da constatação do conflito, a data da publicação do acórdão. Lei inconstitucional é lei natimorta
³“(…) tenho atuado obstaculizando a inconstitucionalidade útil. No caso, penso não haver qualquer risco, porque a atuação dos magistrados se fez sob o ângulo da teoria dos servidores, gênero, de fato, quer dizer, não há possibilidade de cogitar-se da revisão de atos que tenham praticado. Por isso, peço vênia ao Relator para seguir entendendo que a declaração de inconstitucionalidade gera efeitos retroativos e que, portanto, não se pode, simplesmente, considerar ser a Constituição Federal um documento flexível que fique em standy by até que o Supremo decida a respeito da harmonia, ou não, de certo diploma legal com ela, Constituição. (…)”
⁴ Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão:
§ 3º Na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do Supremo Tribunal Federal e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica.
*Artigo postado originalmente no Migalhas.