Desafios na liquidação de julgados no processo administrativo tributário federal

Sabe-se que a fase de liquidação de julgado no processo judicial é embasada nos princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa, uma vez que se está diante de atos tendentes a atingir o patrimônio de particulares. E no processo administrativo federal tributário? Há essa preocupação pelo legislador infraconstitucional?

A liquidação de sentença no âmbito judicial prevê duas modalidades: a liquidação por arbitramento, quando determinado pela sentença ou convencionado pelas partes, ou pelo procedimento comum, quando há necessidade da resolução litigiosa na liquidação, conforme os artigos 509 a 512 do CPC/2015.

Essa fase processual proporciona ao particular uma série de garantias processuais e constitucionais, assegurando que a parte tenha a oportunidade de contestar quaisquer inconsistências no valor final apurado após o trânsito em julgado da decisão de mérito nos autos.

O CPC/2015 ainda permite a interposição de agravo de instrumento contra decisões interlocutórias relacionadas à liquidação (parágrafo único do artigo 1.015), reforçando o direito de o contribuinte contestar eventuais irregularidades e garantindo o acesso a mecanismos recursais eficazes.

Em relação ao processo administrativo tributário federal, importante mencionar, logo de início, que não há uma legislação específica que trate da liquidação de julgados, sendo o processo apenas regulamentado pelo Decreto nº 70.235/1972, o qual estabelece os procedimentos para a constituição do crédito tributário e a resolução de litígios fiscais.

Embora os atos preparatórios relacionados à constituição do crédito tributário, como a lavratura do auto de infração, sejam etapas iniciais do processo administrativo tributário, o julgamento administrativo em primeira instância ocorre nas Delegacias de Julgamento da Receita Federal do Brasil (DRJs), responsáveis por analisar o mérito das defesas apresentadas pelos contribuintes contra autos de infração ou decisões administrativas de natureza creditória (despachos decisórios).

O acórdão da DRJ pode ser questionado por meio de recurso voluntário ou remetido de ofício ao Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) caso o contribuinte seja vencedor em controvérsias de alta relevância econômica [1].

O Carf, como instância superior, revisa os acórdãos proferidos pelas DRJs e desempenha papel crucial na uniformização da interpretação das normas tributárias. Contudo, mesmo após o trânsito em julgado de um acórdão do Carf, resta à Receita Federal do Brasil executar os atos de liquidação e cumprimento da decisão, o que envolve, geralmente, a realização de cálculos.

Lacuna normativa e o Parecer Normativo nº 02/Cosit

Essa fase final, executada sob a responsabilidade das Delegacias da Receita Federal do Brasil, é essencial para materializar os direitos e obrigações reconhecidos no julgamento. Entretanto, diferentemente do que ocorre no processo judicial, o processo administrativo tributário carece de disposições expressas que detalhem os procedimentos de liquidação, limitando-se a atribuir ao órgão preparador a tarefa de promover os cálculos necessários. Essa lacuna normativa muitas vezes compromete a transparência e a segurança jurídica, gerando a necessidade de judicialização para a correta execução do julgado.

Embora o Regimento Interno do Carf permita a oposição de embargos de declaração para sanar obscuridades, contradições ou omissões nos acórdãos, tal recurso não abrange a fase de liquidação, limitando-se à revisão de aspectos formais da decisão colegiada. Consequentemente, equívocos ou excessos cometidos durante a execução administrativa da decisão transitada em julgado frequentemente permanecem sem mecanismos eficazes de contestação na esfera administrativa, comprometendo a segurança jurídica e os direitos do contribuinte.

Visando sanar essa omissão do legislador infraconstitucional sobre a matéria em questão, a Coordenação-Geral de Tributação (Cosit) emitiu o Parecer Normativo nº 02/2016 vedando a interposição de recursos contra o ato de liquidação do acórdão do Carf, salvo em casos de erro de fato, nos quais o contribuinte pode apresentar um pedido de revisão com base em uma interpretação extensiva do artigo 149 do CTN.

O reconhecimento, pela Cosit, da possibilidade de se formular um pedido de revisão é um passo na direção correta, mas ainda insuficiente para cobrir todas as lacunas existentes, pois dependerá da interpretação do órgão administrativo, o que pode não assegurar plenamente o direito do contribuinte. Ainda mais porque da decisão que indefere o pedido de revisão, não cabe recurso – o que, por si só, coloca em dúvida se os princípios do devido processo legal, do contraditório e da ampla defesa estão sendo devidamente aplicados no referido caso.

Essa comparação revela que, enquanto o CPC/2015 oferece um conjunto mais robusto de ferramentas recursais e de controle, o processo administrativo tributário federal apresenta graves limitações na fase de liquidação, restringindo a capacidade do contribuinte de questionar irregularidades de maneira efetiva.

Como consequência, é comum que contribuintes sejam forçados a recorrer ao Poder Judiciário para garantir a correta aplicação de decisões administrativas, transformando a judicialização em uma necessidade diante da ausência de alternativas suficientes na esfera administrativa.

Um exemplo disso é o acórdão proferido pela 1ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região nos autos da Apelação Cível nº 5001487-54.2018.4.04.7205 (j. 10/11/2021), através do qual negou provimento ao recurso de apelação da União, para confirmar a sentença que entendeu que o acordão proferido pelo Carf havia sido liquidado incorretamente pela Delegacia da Receita Federal do Brasil.

No caso acima citado, o contribuinte se viu obrigado a judicializar a matéria para garantir a intepretação correta do acórdão transitado em julgado do Carf. Caso houvesse uma legislação federal que possibilitasse o contraditório e a ampla defesa na fase de liquidação de julgado (no processo administrativo tributário), provavelmente essa situação seria resolvida no próprio âmbito administrativo.

Apesar dos avanços trazidos pela reforma tributária no PLP 68/2024, ainda não foram incluídas disposições específicas para melhorar os procedimentos de liquidação de julgados no âmbito administrativo federal. O projeto, atualmente em tramitação no Senado, prioriza a simplificação tributária, mas deixa de abordar mecanismos que garantam maior proteção ao contribuinte nessa fase, mantendo as lacunas que frequentemente levam à judicialização.

A ausência de regulamentação específica para a fase de liquidação de julgados no processo administrativo tributário evidencia uma lacuna que compromete a segurança jurídica e os direitos fundamentais dos contribuintes. Sem mecanismos claros que assegurem o direito à manifestação e à contestação nessa etapa, os contribuintes enfrentam barreiras administrativas que os levam, inevitavelmente, ao Poder Judiciário como única alternativa viável para fazer valer suas garantias.

Em conclusão, esse cenário reforça a urgência de uma reforma legislativa federal que contemple regras precisas para a liquidação e execução de julgados administrativos, garantindo transparência, previsibilidade e o pleno exercício do contraditório e da ampla defesa. Com uma regulamentação mais robusta, seria possível reduzir a sobrecarga do Poder Judiciário, proporcionando maior eficiência ao sistema tributário e promovendo um ambiente mais equilibrado para a resolução de conflitos.


[1] Art. 1º O Presidente de Turma de Julgamento de Delegacia de Julgamento da Receita Federal do Brasil (DRJ) recorrerá de ofício sempre que a decisão exonerar sujeito passivo do pagamento de tributo e encargos de multa, em valor total superior a R$ 15.000.000,00 (quinze milhões de reais). – Portaria MF nº 2/2023

 

Artigo publicado originalmente no Conjur.

PERDÃO DE DÍVIDA: NÃO INCIDÊNCIA DO PIS E DA COFINS

Intensificaram-se debates sobre efeitos tributários do perdão de dívida obtido por empresas devedoras

Nos últimos anos, as renegociações de dívidas bateram recordes, especialmente em razão da necessidade de bancos e fornecedores ajustarem os seus fluxos financeiros esperados à capacidade de pagamento das famílias e empresas, que sofreu significativa deterioração em meio ao cenário adverso da economia brasileira.

Nesse contexto, intensificaram-se nos meios especializados os debates sobre os efeitos tributários do perdão de dívida obtido por empresas devedoras.

No que diz respeito à natureza jurídica, o perdão (ou remissão) de dívida, nos termos do artigo 385 do Código Civil, consiste em ato de liberalidade do credor, que decide exonerar o devedor, sem obter qualquer contrapartida, extinguindo-se a obrigação então existente entre eles.

Sob o ponto de vista contábil, o perdão de dívida implica um ganho econômico e gera uma receita para a empresa beneficiada, tendo em vista que a extinção do passivo não tem como contrapartida um crédito de valor igual ou superior em seu ativo, o que gera um aumento do patrimônio líquido da entidade. (1)

Instada a se manifestar a respeito do assunto, a Receita Federal do Brasil emitiu, em março de 2019, a Solução de Consulta COSIT nº 65, por meio da qual sustentou que a natureza da receita decorrente do perdão depende da natureza da dívida que a gerou. De acordo com o raciocínio empreendido pelo fisco, o perdão de empréstimos e financiamentos geraria uma receita financeira tributada pelo PIS e pela COFINS à alíquota conjunta de 4,65% no regime de não cumulatividade. (2)

Por outro lado, na hipótese de dívidas com fornecedores, o perdão geraria uma receita de recuperação de custos ou despesas a ser computada no “resultado não operacional” (3), sobre a qual incidiriam o PIS e a COFINS à alíquota conjunta de 9,25% na sistemática não cumulativa.

No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), a jurisprudência dominante é desfavorável aos contribuintes, havendo precedentes recentes no sentido de que a receita gerada com o perdão de dívida deve ser tributada pelo PIS e pela COFINS, uma vez que as Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03 não autorizam expressamente a exclusão dessa receita na apuração das referidas contribuições. (4)

Ocorre que, o posicionamento adotado pelo fisco e acolhido pela atual jurisprudência do CARF não encontra respaldo no conceito constitucional de receita fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2013, no julgamento do RE nº 606.107, em regime de repercussão geral. Nesse julgado, o STF definiu receita como “o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo”, afastando, com isso, a incidência das referidas contribuições sobre valores auferidos em decorrência da cessão de créditos acumulados de ICMS. (5)

Em linha com o entendimento do STF, a receita obtida pela empresa beneficiada com o perdão de dívida não deve, a nosso ver, ser submetida à tributação do PIS e da COFINS, tendo em vista que a receita contábil decorrente do perdão não representa um ingresso financeiro e tampouco um novo direito para o patrimônio da empresa.

De fato, o perdão de dívida não dá origem a um ingresso financeiro para a empresa beneficiada, uma vez que a receita por ela registrada tem como contrapartida o passivo extinto, e não o seu ativo.

Além disso, o perdão de dívida não gera um novo direito que incrementa positivamente o patrimônio da empresa devedora. Isso porque, em termos jurídicos, o patrimônio corresponde a uma universalidade de direitos dotados de valor econômico, conforme prevê o artigo 91 do Código Civil. No entanto, o instituto do perdão (ou remissão) de dívida previsto no Código Civil não implica um novo direito que se agrega ao patrimônio da empresa beneficiada, mas equivale sim à extinção de uma obrigação anteriormente existente.

Diante dessas considerações, a questão que se coloca é a seguinte: os efeitos tributários do perdão de dívida estão subordinados aos contornos delineados para esse instituto de direito privado no Código Civil? A resposta, em nossa opinião, é positiva.

Quando a Constituição utiliza institutos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias, o legislador tributário não pode alterar a sua definição, conteúdo e alcance (artigo 110 do CTN). Por outro lado, quando não for esse o caso, o legislador tributário está livre para atribuir sentidos diversos aos institutos típicos de direito privado, a fim de modificar as suas características e definir os seus efeitos tributários (art. 109 do CTN).

O perdão de dívida enquadra-se nessa última hipótese e, por esse motivo, o legislador tributário poderia alterar, para fins de incidência do PIS e da COFINS, as características previstas no Código Civil para esse instituto. No entanto, fato é que a lei tributária é silente em relação a isso, não havendo qualquer dispositivo na legislação de regência das referidas contribuições que faça referência, expressa ou implícita, ao perdão de dívida. Em razão disso, pode-se afirmar que há uma equivalência entre a definição, o conteúdo e o alcance do instituto do perdão de dívida no âmbito do Direito Civil e do Direto Tributário.

Pelo exposto, concluímos que, embora acarrete um ganho econômico e gere uma receita contábil, o perdão de dívida não implica uma receita sujeita à tributação do PIS e da COFINS. (6)

  1. Conforme item 4.25, do CPC 00 (R1) – Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro. Disponível em: http://www.cpc.org.br/CPC.
  2. Na Solução de Consulta COSIT nº 176, de outubro de 2018, a Receita Federal já havia se manifestado nesse mesmo sentido.
  3. Com a convergência das normas contábeis brasileiras ao padrão internacional, o antigo “resultado não operacional” deixou de existir, passando a ser denominado como “outros resultados abrangentes”, nos termos do Pronunciamento Técnico CPC nº 26.
  4. Nesse sentido, vide: Acórdão nº 3302-006.474, de 2019; Acórdão nº 1401-001.041, de 2013; e Acórdão nº 3201-002.117, de 2016.
  5. Íntegra em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4919271.
  6. Pelos mesmos argumentos, o perdão de dívida obtido por empresas sujeitas ao regime cumulativo do PIS e da COFINS também não deve ser tributado. Além disso, mesmo que se acolha o entendimento do fisco e se considere que o perdão gera uma receita financeira ou uma receita não operacional, ainda assim essa receita não deve ser tributada na sistemática cumulativa, cuja base de cálculo se limita ao faturamento.

 

Artigo originalmente postado no Jota