Intensificaram-se debates sobre efeitos tributários do perdão de dívida obtido por empresas devedoras
Nos últimos anos, as renegociações de dívidas bateram recordes, especialmente em razão da necessidade de bancos e fornecedores ajustarem os seus fluxos financeiros esperados à capacidade de pagamento das famílias e empresas, que sofreu significativa deterioração em meio ao cenário adverso da economia brasileira.
Nesse contexto, intensificaram-se nos meios especializados os debates sobre os efeitos tributários do perdão de dívida obtido por empresas devedoras.
No que diz respeito à natureza jurídica, o perdão (ou remissão) de dívida, nos termos do artigo 385 do Código Civil, consiste em ato de liberalidade do credor, que decide exonerar o devedor, sem obter qualquer contrapartida, extinguindo-se a obrigação então existente entre eles.
Sob o ponto de vista contábil, o perdão de dívida implica um ganho econômico e gera uma receita para a empresa beneficiada, tendo em vista que a extinção do passivo não tem como contrapartida um crédito de valor igual ou superior em seu ativo, o que gera um aumento do patrimônio líquido da entidade. (1)
Instada a se manifestar a respeito do assunto, a Receita Federal do Brasil emitiu, em março de 2019, a Solução de Consulta COSIT nº 65, por meio da qual sustentou que a natureza da receita decorrente do perdão depende da natureza da dívida que a gerou. De acordo com o raciocínio empreendido pelo fisco, o perdão de empréstimos e financiamentos geraria uma receita financeira tributada pelo PIS e pela COFINS à alíquota conjunta de 4,65% no regime de não cumulatividade. (2)
Por outro lado, na hipótese de dívidas com fornecedores, o perdão geraria uma receita de recuperação de custos ou despesas a ser computada no “resultado não operacional” (3), sobre a qual incidiriam o PIS e a COFINS à alíquota conjunta de 9,25% na sistemática não cumulativa.
No âmbito do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (CARF), a jurisprudência dominante é desfavorável aos contribuintes, havendo precedentes recentes no sentido de que a receita gerada com o perdão de dívida deve ser tributada pelo PIS e pela COFINS, uma vez que as Leis nº 10.637/02 e nº 10.833/03 não autorizam expressamente a exclusão dessa receita na apuração das referidas contribuições. (4)
Ocorre que, o posicionamento adotado pelo fisco e acolhido pela atual jurisprudência do CARF não encontra respaldo no conceito constitucional de receita fixado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em maio de 2013, no julgamento do RE nº 606.107, em regime de repercussão geral. Nesse julgado, o STF definiu receita como “o ingresso financeiro que se integra no patrimônio na condição de elemento novo e positivo”, afastando, com isso, a incidência das referidas contribuições sobre valores auferidos em decorrência da cessão de créditos acumulados de ICMS. (5)
Em linha com o entendimento do STF, a receita obtida pela empresa beneficiada com o perdão de dívida não deve, a nosso ver, ser submetida à tributação do PIS e da COFINS, tendo em vista que a receita contábil decorrente do perdão não representa um ingresso financeiro e tampouco um novo direito para o patrimônio da empresa.
De fato, o perdão de dívida não dá origem a um ingresso financeiro para a empresa beneficiada, uma vez que a receita por ela registrada tem como contrapartida o passivo extinto, e não o seu ativo.
Além disso, o perdão de dívida não gera um novo direito que incrementa positivamente o patrimônio da empresa devedora. Isso porque, em termos jurídicos, o patrimônio corresponde a uma universalidade de direitos dotados de valor econômico, conforme prevê o artigo 91 do Código Civil. No entanto, o instituto do perdão (ou remissão) de dívida previsto no Código Civil não implica um novo direito que se agrega ao patrimônio da empresa beneficiada, mas equivale sim à extinção de uma obrigação anteriormente existente.
Diante dessas considerações, a questão que se coloca é a seguinte: os efeitos tributários do perdão de dívida estão subordinados aos contornos delineados para esse instituto de direito privado no Código Civil? A resposta, em nossa opinião, é positiva.
Quando a Constituição utiliza institutos de direito privado para definir ou limitar competências tributárias, o legislador tributário não pode alterar a sua definição, conteúdo e alcance (artigo 110 do CTN). Por outro lado, quando não for esse o caso, o legislador tributário está livre para atribuir sentidos diversos aos institutos típicos de direito privado, a fim de modificar as suas características e definir os seus efeitos tributários (art. 109 do CTN).
O perdão de dívida enquadra-se nessa última hipótese e, por esse motivo, o legislador tributário poderia alterar, para fins de incidência do PIS e da COFINS, as características previstas no Código Civil para esse instituto. No entanto, fato é que a lei tributária é silente em relação a isso, não havendo qualquer dispositivo na legislação de regência das referidas contribuições que faça referência, expressa ou implícita, ao perdão de dívida. Em razão disso, pode-se afirmar que há uma equivalência entre a definição, o conteúdo e o alcance do instituto do perdão de dívida no âmbito do Direito Civil e do Direto Tributário.
Pelo exposto, concluímos que, embora acarrete um ganho econômico e gere uma receita contábil, o perdão de dívida não implica uma receita sujeita à tributação do PIS e da COFINS. (6)
- Conforme item 4.25, do CPC 00 (R1) – Estrutura Conceitual para Elaboração e Divulgação de Relatório Contábil-Financeiro. Disponível em: http://www.cpc.org.br/CPC.
- Na Solução de Consulta COSIT nº 176, de outubro de 2018, a Receita Federal já havia se manifestado nesse mesmo sentido.
- Com a convergência das normas contábeis brasileiras ao padrão internacional, o antigo “resultado não operacional” deixou de existir, passando a ser denominado como “outros resultados abrangentes”, nos termos do Pronunciamento Técnico CPC nº 26.
- Nesse sentido, vide: Acórdão nº 3302-006.474, de 2019; Acórdão nº 1401-001.041, de 2013; e Acórdão nº 3201-002.117, de 2016.
- Íntegra em: http://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=4919271.
- Pelos mesmos argumentos, o perdão de dívida obtido por empresas sujeitas ao regime cumulativo do PIS e da COFINS também não deve ser tributado. Além disso, mesmo que se acolha o entendimento do fisco e se considere que o perdão gera uma receita financeira ou uma receita não operacional, ainda assim essa receita não deve ser tributada na sistemática cumulativa, cuja base de cálculo se limita ao faturamento.
Artigo originalmente postado no Jota