Com o crescente aumento da globalização das empresas multinacionais e o exponencial desenvolvimento do comércio internacional no decorrer do século passado, foi criado, já em 1979 pelos Estados Unidos da América, e mais tarde por grande parte dos países ocidentais, um conjunto de regras denominadas “preços de transferência”, que têm por objetivo desencorajar o superfaturamento de importações e o subfaturamento de exportações de/para empresas de um mesmo conglomerado econômico, evitando-se a transferência de lucros para jurisdições com menor carga tributária e, em última análise, evitando-se a famigerada “dupla não tributação”.
No caso brasileiro, é notório que as regras locais de preços de transferência, datadas de 1996, são, se não o maior, certamente um dos maiores entraves à ascensão do país à Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – a famosa OCDE, também conhecida como o “clube de boas práticas dos países ricos”.
Mas quais seriam os principais problemas dessa legislação no Brasil? A título ilustrativo, temos: a prevalência de margens fixas de lucro para cálculo do preço parâmetro (ignorando-se a realidade dos setores da economia); a complexidade dos cálculos (cálculo “produto a produto”, ou seja, por item importado/exportado); o foco em mercadorias (em detrimento dos chamados “intangíveis”); a ausência de menção expressa ao princípio “arm’s length”; o desalinhamento com os métodos internacionais (ausência de TNMM e de “profit split”); a livre escolha dos métodos; o escopo objetivo reduzido (apenas “bens, serviços e direitos”, sem contemplar reestruturação ou cost sharing); o escopo subjetivo ampliado (distribuidores, paraísos fiscais); o safe harbor limitado às exportações; e a ausência de APAs (Advanced Price Arrangements) e a insipiência de MAPs (Mutual Agreement Procedures), apenas para citar uma dezena.
É claro que o alinhamento com o padrão OCDE passa necessariamente por uma medida de simplificação dos cálculos (idealmente apenas um cálculo por pessoa jurídica, e não por item importado/exportado), sendo a simplicidade bem vinda tanto para os contribuintes como para o próprio fisco.
Outra medida de alinhamento é o afastamento do foco em mercadorias e a concentração de esforços nos serviços, intangíveis e itens financeiros, cujos preços são mais passíveis de transferência a outras jurisdições, sem falar na inegável tendência de digitalização da economia global nos dias atuais.
Frise-se, ainda, a conveniência da adoção de safe harbors para os casos de falta de comparáveis, o que consequentemente implica em uma desejável redução de custos de compliance.
Neste contexto, não podemos ignorar os esforços da Receita Federal do Brasil para o aprimoramento das regras brasileiras de preços de transferência, tendo participado de um grupo de trabalho conjunto com a OCDE desde 2018, o conhecido “Projeto Preços de Transferência OCDE-Brasil”, que culminou com a divulgação oficial de um extenso relatório em reunião ocorrida em Brasília no último dia 18 de dezembro de 2019, na qual estiveram presentes servidores da Receita Federal, representantes do Ministério da Economia, funcionários da OCDE, representantes de multinacionais interessadas no assunto, pessoas ligadas ao setor acadêmico bem como representantes diplomáticos de alguns países, tais como Inglaterra e Espanha.
Nota-se que a participação massiva de importantes e diversificados setores da sociedade civil só vem a confirmar a premente importância do tema, que há tempos tem se mostrado um grande obstáculo ao desenvolvimento do Brasil no comércio internacional.
Referido relatório tem por objetivo compilar as lacunas, as divergências, as realizações e os avanços relacionados ao Brasil no que tange aos preços de transferência frente ao padrão internacional e às diretrizes da OCDE, recomendando, ao final, o alinhamento das práticas e a correção das distorções.
A ideia e o grande desejo dos profissionais e estudiosos do assunto é que tal documento sirva, em um futuro próximo, como a base para um projeto de lei que, definitivamente, venha a alterar as regras brasileiras de transfer pricing, de modo a finalmente alinhar o padrão brasileiro à prática internacional.
Cumpre salientar que os principais objetivos deste alinhamento são, em uma primeira análise, tornar o país mais competitivo e com um ambiente negocial mais amigável, reduzir custos de conformidade, evitar a dupla tributação (bem como a dupla não tributação) e atrair investimentos externos, com todos os benefícios indiretos deles decorrentes, como, por exemplo, a geração de empregos, o aumento de receita tributária e o crescimento da economia como um todo, sendo que a adesão do país à OCDE, que é um processo altamente político e que depende de outros fatores alheios ao campo tributário, muito possivelmente viria a reboque, trazendo incomensuráveis benefícios ao Brasil do ponto de vista do comércio internacional.
*Artigo originalmente postado no Jornal O Estado de S. Paulo