O julgamento do terço de férias pelo STF deve ser revisto

Conforme amplamente divulgado, o Supremo Tribunal Federal finalizou, em 28/08/2020, o julgamento do Recurso Extraordinário 1.072.485/PR (Tema 985 da Repercussão Geral), cujo objeto é a incidência da contribuição previdenciária patronal (em regra, de 20%) sobre os valores pagos aos empregados a título de terço constitucional de férias, direito social previsto no art. 7º, inc. XVII, da CF/88.

O julgamento, ocorrido por meio do Plenário Virtual, causou enorme perplexidade e preocupação entre aqueles que têm acompanhado a miríade de decisões em matéria tributária proferidas nos últimos meses, em especial os empresários, tendo em vista o surpreendente desfecho desfavorável aos contribuintes.

Em seu voto, o Min. Marco Aurélio Mello (Relator) manifestou entendimento – seguido pela expressiva maioria do colegiado (9×1) – no sentido de que não viola qualquer preceito constitucional a incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o terço de férias, tendo sido fixada a seguinte tese jurídica: “É legítima a incidência de contribuição social sobre o valor satisfeito a título de terço constitucional de férias”.

O entendimento veiculado no acórdão publicado em 02/10 – e aqui, diga-se, está a razão da perplexidade e preocupação – revela uma completa reviravolta no entendimento jurisprudencial dos tribunais superiores, incluindo o do próprio STF, já consolidado há praticamente 10 anos, no sentido de que a contribuição previdenciária patronal não poderia incidir sobre valores pertinentes ao adicional de férias. Não apenas a reviravolta foi surpreendente, mas também a fundamentação da decisão, que, com a devida vênia, parece não ter enfrentado pontos fundamentais da tese já consagrada e não justificou a adoção de resultado oposto ao de casos análogos.

Com efeito, a verba em questão cumpre função social importante, já que é um valor acrescido ao que o empregado recebe quando goza suas férias, a fim de que os aumentos de despesas ocorridos nesse período de descanso possam ser supridos e o descanso, efetivo. Isso denota o caráter compensatório e não remuneratório da verba, como pontuado pelo Min. Edson Fachin no único voto divergente da posição do relator.

Nesse sentido, a posição histórica das cortes superiores é inegável. Uma das primeiras oportunidades em que a Primeira Seção do STJ apreciou a questão foi no longínquo ano de 2010. Na ocasião, o Min. Asfor Rocha, acompanhado à unanimidade pelos demais, constatou que, àquela altura, já era entendimento recorrente, nas duas Turmas que se dedicam à matéria tributária no STJ, quanto à ilegalidade da incidência, considerando a natureza indenizatória e não remuneratória da verba.

Posteriormente (2014), a mesma Primeira Seção, no julgamento do emblemático Recurso Especial 1.230.957/RS, já na sistemática dos recursos repetitivos (precedente vinculante!), reafirmou o entendimento de que a verba relativa ao terço de férias “possui natureza indenizatória/compensatória, e não constitui ganho habitual do empregado, razão pela qual sobre ela não é possível a incidência de contribuição previdenciária (a cargo da empresa)”.

É de se notar que a análise da natureza jurídica da verba, que sempre foi matéria de natureza infraconstitucional segundo STF e STJ, em conjunto com a habitualidade (artigo 201, § 11, da CF) com que a prestação é paga, foi determinante para a conclusão a que chegaram os Ministros naquela oportunidade.

No STF a situação não é diferente, pois a corte já havia, por todos os seus órgãos, decidido favoravelmente aos contribuintes em diversas oportunidades: RE 587.941, rel. Min. Celso de Mello, Segunda Turma, DJe 22.11.2008; AI 603.537, rel. Min. Eros Grau, Segunda Turma, DJe 30.03.2007; AI 712.880, rel. Min. Ricardo Lewandowski, Primeira Turma, DJe 19.06.2009; RE 593.068, rel. Min Roberto Barroso, Tribunal Pleno, DJe 21.03.2019, esse último submetido à Repercussão Geral – Tema 163 (também vinculante).

É bem verdade que os casos mencionados se referem à contribuição previdenciária do servidor público e não dos empregados submetidos à CLT. Entretanto, como muito bem concluiu o Min. Mauro Campbell Marques, que foi relator do REsp 1.230.957/RS, “não se justifica a adoção de entendimento diverso em relação aos trabalhadores sujeitos ao Regime Geral da Previdência Social. Isso porque o entendimento do Supremo Tribunal Federal ampara-se, sobretudo, nos arts. 7º, XVII, e 201, § 11, da CF/88, sendo que este último preceito constitucional estabelece regra específica do Regime Geral da Previdência Social”. Em suma, em sendo o mesmo dispositivo constitucional a fundamentar o pagamento da verba a todos os empregados (privados e públicos), por que somente sobre o segundo grupo não recairia o dever de contribuir?

Nesse sentido, causa estranheza o acórdão proferido pelo STF quando do exame do Tema 985. Embora essa decisão tenha utilizado os mesmos fundamentos lançados quando da análise do Tema 163 (art. 7º, XVII, da CF), a corte chegou a uma solução oposta, sem, contudo, ter feito a necessária distinção (distinguishing) ou evidenciado a superação de entendimento conforme determina o Código de Processo Civil.

De todo modo, quando se tratava de adentrar na análise da natureza indenizatória ou remuneratória de alguma verba, cuja tributação pela contribuição previdenciária patronal se questionava frente à CF, o STF vinha mantendo o entendimento consolidado de que tal verificação é de cunho estritamente infraconstitucional (ou seja, matéria para o STJ), fugindo, portanto, da sua competência.

É o caso dos debates sobre o Aviso Prévio (ARE 745.901 – Tribunal Pleno); dos valores pagos nos quinze dias que antecedem o auxílio doença (RE 611.505); da natureza jurídica de verbas rescisórias para fins do imposto sobre a renda (AI 705.941); e das horas extras e adicionais noturno, de insalubridade, de periculosidade e de transferência (ARE 1.260.750), apenas para citar alguns exemplos.

Mesmo no RE 565.160/SC (Tema 20 da Repercussão Geral), cujo relator também foi o Min. Marco Aurélio, a análise da compatibilidade da cobrança de contribuição previdenciária sobre determinadas verbas discutidas no caso concreto (adicionais de periculosidade, insalubridade e noturno, gorjetas, prêmios, ajudas de custo e diárias de viagem, comissões) cingiu-se à verificação da habitualidade com que a prestação é paga, tendo concluído o Plenário que “a contribuição social a cargo do empregador incide sobre ganhos habituais do empregado, quer anteriores ou posteriores à Emenda Constitucional nº 20/1998”.

A leitura atenta de diversos votos que se pronunciaram naquele julgamento revela que qualquer debate sobre a natureza da verba não poderia ter lugar no STF, pois se trata de questão estritamente infraconstitucional. Por outro lado, na decisão do Tema 985 não é dito claramente o dispositivo constitucional que suportaria a natureza remuneratória da verba, nem justificada a alteração do posicionamento da corte quanto à questão.

O que se tem, portanto, é que (i) o STF não analisava a natureza jurídica das verbas pagas aos trabalhadores e (ii) os tribunais superiores, incluindo o próprio Supremo, já haviam se manifestado pela não incidência da contribuição previdenciária patronal sobre o terço de férias. Tudo isso em sentido diametralmente oposto ao que ocorreu na sessão virtual realizada entre 21 e 28 de agosto de 2020, no RE 1.072.485/PR.

Desse modo, os embargos de declaração opostos pela parte e pelos amicus curiae devem ser acolhidos com efeitos infringentes, diante da falta de fundamentação suficiente na decisão em comparação com a sólida e histórica jurisprudência contrária das cortes superiores. Na pior das hipóteses, o STF deveria ao menos modular os efeitos da decisão, de modo que ela apenas alcance fatos geradores posteriores, para garantir os princípios da segurança jurídica e da confiança legitima, valores caros à república e cuja proteção também é de responsabilidade da Suprema Corte brasileira.

*Maurício Barros é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados e doutor em Direito Econômico, Financeiro e Tributário pela USP

*Jorge Henrique Fernandes Facure é sócio do Gaia Silva Gaede Advogados e especialista em Direito Tributário pela USP

 

*Artigo postado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo.

Desafios na implementação da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins

Em março de 2017, o famigerado Recurso Extraordinário 574.706 foi julgado, pela nossa Corte Suprema, de forma favorável ao contribuinte, no sentido de ser juridicamente possível a exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS.

De lá para cá, muito tem ocorrido em relação a este tema: a apresentação de Embargos de Declaração pela União em outubro de 2017, a emissão de Soluções de Consulta (SCI 13/18 e SC COSIT 177/19) e Instrução Normativa (1.911/19) pela Receita Federal e a emissão de um parecer pela Procuradoria Geral da Fazenda Nacional em junho de 2019 solicitando a modulação dos efeitos da decisão a partir do julgamento dos Embargos – sem, contudo, que tenha havido o tão aguardado desfecho deste caso, o que infelizmente apenas aumenta a sensação de insegurança jurídica que tanto afugenta investimentos e retarda a retomada do crescimento da economia de nosso país.

Não obstante, fato é que o atual presidente do Supremo Tribunal Federal liberou os Embargos de Declaração em questão para inclusão na pauta do plenário de 5 de dezembro de 2019, o que, apesar de não ser uma garantia de julgamento, enche de esperanças os meios empresarial e jurídico que tanto anseiam pelo desfecho do caso.

Neste julgamento, esperamos que várias questões objeto de embates entre fisco e contribuintes sejam definitivamente sanadas, tais como: (i) a questão do valor do ICMS a ser excluído (o destacado, conforme o voto da Ministra Carmen Lúcia e o defendido pelos contribuintes, ou o pago, tal qual sustentado pela Receita Federal); (ii) o impacto da decisão sobre os créditos das contribuições apropriados nas aquisições (definição legal dos créditos como o “valor da aquisição” versus a posição da RFB na IN 1.911/19, deixando de prever expressamente a inclusão do ICMS na base dos créditos); e (iii) a questão da modulação dos efeitos da decisão (efeitos retroativos para todos os contribuintes – respeitado o prazo prescricional de cinco anos, apenas para os que ingressaram com ações judiciais ou efeitos apenas futuros, em detrimento dos direitos eventualmente já adquiridos e da coisa julgada).

Não bastassem estas questões, que esperamos ansiosamente sejam dirimidas por ocasião do julgamento dos Embargos, outras de não menos complexidade se impõem, como, por exemplo, (i) o momento de tributação dos créditos de pagamentos a maior decorrentes das ações judiciais sobre este tema pelo IRPJ, CSLL, PIS e COFINS (se quando do momento da contabilização ou à medida das compensações); (ii) os documentos suporte em que deve se basear a quantificação dos créditos (balancetes versus Escriturações Fiscais Digitais); bem como (iii) os registros da EFD-Contribuições em que deve ser lançada a exclusão do ICMS para períodos posteriores ao trânsito em julgado da ação (Registro C170, C181/185 ou M210/610).

Além disso, outros cuidados devem ser tomados pelos contribuintes, tais como a correta apuração dos valores pagos a maior (alíquotas aplicáveis de PIS/COFINS à época, possíveis estornos de débitos de ICMS, possíveis parcelamentos, possíveis duplicidades, aumento de saldo credor, etc.), a habilitação do crédito (conforme formulário específico da Receita Federal), a atualização do crédito (competência por competência), a entrega das declarações de compensação (PER/DCOMP) e a guarda de documentos (para o caso de questionamentos das compensações pelas autoridades fiscais nos cinco anos seguintes).

Estes são apenas alguns desafios a serem enfrentados pelos contribuintes que buscaram, pela via judicial, os seus direitos relacionados à exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da COFINS, direitos estes já confirmados e chancelados por nossa Corte Suprema.

O que podemos esperar é que tais desafios, por um lado, não sirvam como inibidores dos contribuintes na busca por seus direitos, mas que, por outro lado, prestem-se a demonstrar aos cidadãos, às empresas, à sociedade em geral e aos Poderes da República, em especial ao Legislativo, que já está mais do que na hora de reformarmos e simplificarmos o nosso sistema tributário de modo a reduzir os contenciosos, conferir segurança jurídica às relações negociais e auxiliar no crescimento do investimento e do emprego, essencial à retomada econômica de que tanto precisamos.

 

*Artigo originalmente postado no Jornal O Estado de S. Paulo