Depósito prévio em dinheiro por empresas em recuperação judicial

A cautela quanto à viabilidade e requisitos da ação rescisória sempre foi um tema nebuloso. Antes mesmo da criação de um código de processo civil nacional, diversos estados brasileiros, ante à possibilidade de regularem normas processuais¹, possuíam, em seus códigos, mecanismos para afastar o aspecto imutável da decisão transitada em julgado, como por exemplo a utilização de embargos à execução².

Com a Constituição de 1934, a competência para legislar em matéria processual civil passou a ser da União³. Posteriormente, o Código de Processo Civil de 1939 confirmou a ação rescisória como o meio de impugnação da coisa julgada⁴. Tal ação foi mantida no diploma processual de 1973, com algumas mudanças substanciais⁵, como a imposição de depósito prévio de 5% sobre o valor da causa, para fins de interposição do instrumento rescisório.

Com muita razão, a exigência do depósito prévio foi mantida no Código de Processo Civil de 2015⁶. Contudo, há diversas questões que precisam ser analisadas no bojo do depósito prévio, particularmente em face do uso da ação rescisória por empresas em recuperação judicial.

Conforme orientação doutrinária⁷, o depósito prévio visa desestimular o ajuizamento de demandas rescisórias, a fim de evitar mácula à segurança da coisa julgada.

Não se discute a constitucionalidade do depósito prévio, até mesmo porque o Supremo Tribunal Federal já se debruçou sobre o tema e firmou a tese, segundo a qual “É constitucional a fixação de depósito prévio como condição de procedibilidade da ação rescisória”⁸.

Para fixar a tese, os ministros, acompanhando o relator, ministro Roberto Barroso, se basearam na mesma premissa doutrinária. Veja-se:

“É inegável que a norma ora em exame constitui uma tentativa de graduar os incentivos para evitar a propositura irresponsável de ações rescisórias. Ainda que o acesso à justiça seja um importante direito fundamental, todo e qualquer postulante deve litigar de forma responsável. Além disso, não se pode esquecer que a ação rescisória possui caráter excepcionalíssimo, uma vez que restringe a segurança jurídica instrumentalizada pela coisa julgada. A partir do momento que se banaliza a ação rescisória, a coisa julgada é enfraquecida e a confiança que os cidadãos têm sobre uma decisão judicial definitiva é fortemente abalada⁹.

Malgrado o legislador tenha instituído uma “trava” no valor máximo do depósito prévio¹⁰, entende-se que a necessidade do depósito prévio precisa ser balizada diante do caso concreto, mormente nos casos de empresas em recuperação judicial.

Não se desconhece o posicionamento dos Tribunais Superiores acerca das hipóteses de dispensa do recolhimento do depósito prévio em ação rescisória, diante da justiça gratuita¹¹ ¹² ou no caso de o autor ser massa falida¹³. Ocorre que empresas em recuperação judicial não se enquadram na benesse para massas falidas¹⁴ e muitas vezes não conseguem provar os requisitos para gratuidade de justiça¹⁵ ¹⁶.

A Lei 11.101/2005, que disciplina a recuperação judicial, apresenta como princípios basilares a preservação da empresa, a proteção aos trabalhadores, e por fim, os interesses dos credores¹⁷. Ou seja, a recuperação judicial, sob a análise econômica mais ampla, “pode significar ganhos sociais mais efetivos, numa análise econômica mais ampla, à medida que a manutenção do empreendimento pode implicar significativa manutenção de empregos, geração de novos postos de trabalho, movimentação da economia, manutenção da saúde financeira de fornecedores, entre inúmeros outros ganhos”¹⁸.

Isto posto, há que se ponderar até que ponto é viável para a manutenção da empresa e dos trabalhadores, o depósito prévio como requisito para o ajuizamento de ação rescisória.

Recentemente, o questionamento ganhou um contorno mais problemático, isso porque a 4ª Turma do STJ, ao julgar REsp 1.871.477-RJ ¹⁹, firmou o entendimento de que o depósito prévio somente pode ser realizado em dinheiro.

O ministro relator, que diante do núcleo verbal “depositar” e do seu objeto direto “importância”, afirmou que a leitura do artigo 968, II, do CPC/2015, leva à conclusão de que só seria possível o depósito em dinheiro.

Com a devida vênia, entende-se que tal entendimento não pode ser irrestrito, sobretudo ante à fragilidade das empresas em recuperação judicial. Imagine-se a situação de uma empresa em recuperação judicial que necessite ajuizar uma ação rescisória, mas não faça jus à benesse de justiça gratuita e que o depósito prévio seja no valor máximo — 1000 salários-mínimos.

Independente do porte da empresa, de concluir que a descapitalização de mais de um milhão de reais, é deveras prejudicial para o plano de recuperação judicial. A exigência de depósito prévio em dinheiro pode, por exemplo, atrapalhar o pagamento de funcionários.

Cumpre ressaltar que, consoante entendimento do STJ, a dispensa desse recolhimento, “não exime o autor da ação de responder pela sanção processual prevista no inciso II do artigo 968 do CPC/2015, na eventualidade de a presente pretensão rescisória vir a ser julgada improcedente ou inadmissível, por unanimidade de votos” ²⁰.

Ou seja, a empresa em recuperação, ainda que dispensada do recolhimento prévio, teria de arcar com a multa, em caso de derrota. Por outro lado, a dispensa irrestrita do recolhimento tornaria inócua a exigência e macularia o princípio da segurança jurídica.

Infere-se, pois, que a decisão mais acertada seria a flexibilização dessa exigência quando a empresa não se enquadre nos critérios da gratuidade da justiça e, desse modo, facultando, ao menos, o alargamento dos meios do depósito prévio.

Vale lembrar que a 3ª Turma do STJ ²¹, há muito, se posiciona no sentido de que a fiança bancária e o seguro garantia produzem os mesmos efeitos que o dinheiro.

Apesar do caso dispor sobre cumprimento de sentença, as razões de decidir do Relator se aplicam ao caso, consoante se depreende do excerto a seguir transcrito:

“Depreende-se que o seguro garantia judicial oferece forte proteção às duas partes do processo, sendo instrumento sólido e hábil a garantir a satisfação de eventual crédito controvertido, tanto que foi equipado ao dinheiro para fins de penhora.
De fato, no cumprimento de sentença, a fiança bancária e o seguro garantia judicial são as opções mais eficientes sob o prisma da análise econômica do direito, visto que reduzem os efeitos prejudiciais da penhora ao desonerar os ativos de sociedades empresárias submetidas ao processo de execução, além de assegurar, com eficiência equiparada ao dinheiro, que o exequente receberá a soma pretendida quando obter êxito ao final da demanda. Assim, dentro do sistema de execução, a fiança bancária e o seguro garantia judicial produzem os mesmos efeitos jurídicos que o dinheiro para fins de garantir o juízo²².

Como se percebe, a utilização de seguro garantia e carta fiança oferece a mesma garantia que o dinheiro, resguardando as partes quando do término da demanda. Como já demonstrado, o recolhimento prévio dos 5% para ajuizamento de ação rescisória visa evitar a banalização do manejo da ação, proteger a outra parte de abusos e garantir que receba algo em caso de improcedência da ação.

Se o seguro garantia e fiança bancária são equiparados ao dinheiro e fornecem a mesma proteção às partes, deduz-se que a flexibilização do requisito do recolhimento em dinheiro para ajuizamento da ação rescisória é medida salutar, já que possibilitaria a utilização desse instituto pelas empresas em recuperação judicial.

Nesse cenário, caso a empresa venha a perder a demanda, haverá meios de custear a conversão em multa, bem como possibilitará à empresa meio menos oneroso, a priori, de se valer do princípio constitucional do acesso à justiça.

Esta proposta precisará ser analisada casuisticamente. De toda forma, ela pode ser um mecanismo para justiça e, principalmente, para evitar a descapitalização de empresas em juízo falimentar, o que, pode prejudicar o plano de recuperação judicial e o pagamento dos salários dos empregados, o que esbarraria no próprio intuito do procedimento recuperacional.

___

¹ Artigo 34 – Compete privativamente ao Congresso Nacional: 23º) legislar sobre o direito civil, comercial e criminal da República e o processual da Justiça Federal;

² Presente no Código de Processo de Minas Gerais (artigo 174, §3º), no Código de Processo de Santa Catarina (artigo 1.845, III), no Código de Processo do Rio de Janeiro (artigo 2.277, b), no Código de Processo de Pernambuco (artigo 163, §2º), no Código de Processo da Bahia (artigo 1.362, §2º), no Código de Processo de São Paulo (artigo 358, II), no Código de Processo do Espírito Santo (artigo 280, III) e no Código de Processo do Distrito Federal (artigo 303, III). In: AMERICANO, Jorge. Estudo teórico e prático da ação rescisória dos julgados no direito brasileiro. 3. ed. São Paulo: Acadêmica, 1936. p. 101.

³ Artigo 5º – Compete privativamente à União: XIX – legislar sobre: a) direito penal, comercial, civil, aéreo e processual, registros públicos e juntas comerciais;

⁴ Segundo o artigo 798 do Código de 1939, cabia ação rescisória quando a sentença era proferida: por juízo incompetente em razão da matéria; por juiz impedido; por juiz peitado; com ofensa à coisa julgada; contra literal disposição de lei; e com base em prova cuja falsidade se tenha apurado no juízo criminal;

⁵ Principais mudanças: 1) limitação cabimento à sentença de mérito (caput do artigo 485); 2) alargamento das hipóteses de cabimento (incisos do artigo 485); 3) legitimados ativos (artigo 487); 4) cumulação dos pedidos rescindente e rescisório (inciso I do artigo. 488); 5) depósito de 5% do valor da causa (inciso II do artigo 488); 6) prazo de dois anos, contados do trânsito em julgado, para a propositura da rescisória (artigo 495);

⁶ Artigo 968. A petição inicial será elaborada com observância dos requisitos essenciais do artigo 319 , devendo o autor: […] II – depositar a importância de cinco por cento sobre o valor da causa, que se converterá em multa caso a ação seja, por unanimidade de votos, declarada inadmissível ou improcedente.

⁷ José Carlos Barbosa Moreira afirma que a necessidade do depósito prévio decorre do “propósito de desestimular a desmedida multiplicação de rescisória, que poderia resultar da sensível ampliação do rol de fundamentos, em confronto com sistema anterior. Ao contrário do que se dá com as condenações em custas e honorários advocatícios, a multa tem caráter indenizatório, não visa compensar a parte vencedora de possíveis prejuízos, mas reprimir uma forma de abuso no exercício do direito de ação (…)”. (MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao Código de Processo Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2009. v. 5. p. 182).

⁸ ADI 3995/DF — relator ministro ROBERTO BARROSO, PLENO, julgado em 13/12/2018, DJe 01/03/2019

⁹ Página 07 do voto do ministro Roberto Barroso na ADI 3995/DF.

¹⁰ Artigo 968. A petição inicial será elaborada com observância dos requisitos essenciais do artigo 319, devendo o autor: […] §2º O depósito previsto no inciso II do caput deste artigo não será superior a 1.000 salários-mínimos.

¹¹ “É inexigível o depósito do artigo 488, II, do Código de Processo Civil ao beneficiário da justiça gratuita, sob pena de afronta ao direito constitucional de livre acesso ao Judiciário. Precedentes. 2. Recurso especial provido”. (STJ – REsp 125.333/SP, relator ministro Castro Meira, julgado em 07.06.2011, v.u.).

¹² “[…]1. A dispensa, por força do deferimento parcial do benefício da gratuidade de justiça, do recolhimento prévio do depósito de 5% (cinco por cento) sobre o valor da causa – concebido como condição de procedibilidade ao ajuizamento da ação rescisória -, não exime o autor da ação de responder pela sanção processual prevista no inciso II do art. 968 do CPC/2015, na eventualidade de a presente pretensão rescisória vir a ser julgada improcedente ou inadmissível, por unanimidade de votos. Precedente específico da Segunda Seção do STJ (AR 4.522/RS, relator ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 24/05/2017, DJe 02/08/2017)”. (…)(AR 6.158/DF, relator ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/10/2021, DJe 05/11/2021).

¹³ A Instrução Normativa nº 31 do TST, que regulamenta o depósito prévio em ação rescisória, prevê, no artigo 6º, que ele não será exigido da massa falida e quando o autor receber salário igual ou inferior ao dobro do mínimo legal ou declarar que não está em condições de pagar as custas do processo sem prejuízo do sustento próprio ou da família.

¹⁴ Segundo a ministra Delaíde, quando do julgamento do ROT — 1001383-19.2020.5.02.0000, “mesmo em recuperação judicial, a empresa não perde totalmente sua capacidade financeira e de gerenciamento dos negócios, como ocorre na falência.

¹⁵ Súmula 463, item II, do TST estabelece, expressamente, que, no caso da pessoa jurídica, não basta a mera declaração de hipossuficiência econômica, é necessária a demonstração cabal de impossibilidade de a parte arcar com as despesas do processo.

¹⁶ De maneira semelhante, o STJ: “cuidando-se de pessoa jurídica, ainda que em regime de recuperação judicial, a concessão da gratuidade somente é admissível em condições excepcionais, se comprovada a impossibilidade de arcar com as custas do processo e os honorários advocatícios” (AgRg no REsp 1509032/SP, relator ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 19/03/2015, DJe 26/03/2015)

¹⁷ Artigo 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica.

¹⁸ Página 5 do voto da ministra Nancy Andrigui no CC 118.183/MG, relatora ministra NANCY ANDRIGHI , SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/11/2011, DJe 17/11/2011

¹⁹ Informativo STJ nº 761 de 19/12/2022 — REsp 1.871.477-RJ, relator ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, por unanimidade, julgado em 13/12/2022 — Acórdão pendente de publicação.

²⁰ AR 6.158/DF, relator ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 27/10/2021, DJe 05/11/2021

²¹ RESP 1.691.748/PR, relator ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 07/11/2017, DJe 17/11/2017; RESP 1.838.837/SP, relator p/ Acórdão: ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/05/2020, DJe 21/05/2020

²² Página 14 do voto do ministro Ricardo Villas Bôas Cueva no RESP 1.691.748/PR

 

Artigo publicado originalmente no ConJur.

Aplicação retroativa dos recentes benefícios tributários à recuperação judicial

Uma empresa que registrou deságio decorrente da renegociação de dívidas em processo de recuperação judicial, antes da vigência da lei 14.112/20, pode reclamar a aplicação do tratamento diferenciado trazido pela norma?

 

O Congresso Nacional aprovou, no fim de 2020, diversas alterações na lei de Falências e Recuperações Empresariais (lei 11.101/05). Contudo, ao sancionar o texto que foi publicado como lei 14.112, o Presidente da República vetou alguns dispositivos.

Quase três meses depois, o Congresso derrubou parte dos vetos e a lei 14.112/20 foi novamente publicada em 26/3/21. Com isto, as empresas em processo de recuperação judicial passaram a ter os seguintes benefícios tributários:

  • Não tributação por PIS e COFINS da receita decorrente da renegociação de dívidas, conhecida como deságio; e
  • Compensação do ganho oriundo do deságio ou da alienação judicial de bens e direitos, com prejuízos fiscais de períodos anteriores, sem o limite de 30%.

Os benefícios não são aplicáveis às operações realizadas entre pessoas, físicas ou jurídicas, consideradas vinculadas nos termos da lei.

Além disso, com a derrubada dos vetos, a dedutibilidade, na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, das despesas geradas pela execução do plano de recuperação judicial, passou a constar expressamente da lei.

Importante também mencionar que, já em sua redação original, a lei 14.112/20 alterou a lei 10.522/02 para prever condições especiais de parcelamento e de transação de débitos tributários de empresas em recuperação judicial, inclusive com a utilização de prejuízo fiscal.

Introduzido o assunto, apresenta-se a seguinte questão: uma empresa que registrou deságio decorrente da renegociação de dívidas em processo de recuperação judicial, antes da vigência da lei 14.112/20, pode reclamar a aplicação do tratamento diferenciado trazido pela norma?

A tentativa de resposta a esse questionamento passa, a nosso ver, pela análise da possibilidade (i) de considerar os dispositivos trazidos pela lei como sendo interpretativos e (ii) de pleitear a aplicação retroativa dos benefícios com base no princípio da isonomia tributária.

O Código Tributário Nacional prevê que a chamada retroatividade benigna da legislação tributária, cuja matéria não seja infração ou penalidade, é aplicável quando a lei for expressamente interpretativa, requisito que não está cumprido pela lei 14.112/20.

Os dispositivos que trazem os benefícios tributários às empresas em recuperação judicial instituíram tratamentos específicos que são exceções a regras tributárias há tempo vigentes, o que reforça a natureza modificativa da norma.

Poderia ser diferente, por exemplo, se em vez de a lei dizer que a receita do deságio não é tributável por PIS e COFINS, dissesse que o deságio não configuraria receita para fins de incidência das contribuições.

Vale lembrar que a concessão de benefício fiscal de forma retroativa pode ter implicações no âmbito da lei de Responsabilidade Fiscal (LRF), primeiro por significar renúncia de receita (art. 14 da LRF) e também pelo fato de que os créditos tributários anteriores à lei 14.112/20 já estão constituídos (Súmula 436 do STJ) e possivelmente quitados ou parcelados.

Deste modo, não nos parece que os dispositivos que trouxeram benefícios tributários às empresas em processo de recuperação judicial possuem natureza interpretativa e que, por isso, deveriam ser aplicados retroativamente.

Embora a lei 14.112/20 seja um único ato legislativo, as disposições decorrentes da derrubada dos vetos possuem vigência a partir da nova publicação, ou seja, 30 dias após 26/3/21, conforme entendimento antigo, mas não modificado, do STF (RE 85.950/RS, DJ de 26/11/76).

Este fato é de extrema importância, principalmente para PIS e COFINS, cuja apuração é mensal, e para as empresas que utilizam o Lucro Real trimestral para tributação de IRPJ e CSLL. De modo que, num exemplo extremo, o deságio registrado em dezembro/20 pode ter um efeito tributário totalmente diverso daquele registrado em março/21.

Não obstante ser defensável que a vigência dos dispositivos que foram inicialmente vetados deve seguir a publicação original, a discussão que vem à tona, diante da irretroatividade da lei, trata da isonomia tributária para as empresas que registraram deságio antes que os benefícios entrassem em vigor.

Um dado interessante é que, uma das justificativas utilizadas pelo Presidente da República para vetar os dispositivos que traziam os benefícios, apesar de não detalhar o contexto do argumento, foi justamente a ofensa ao princípio da isonomia tributária.

Do ponto de vista da justiça tributária, principalmente quanto à capacidade contributiva, a tributação do deságio percebido pelas empresas em recuperação judicial já poderia ser questionada, pois dificulta o atingimento do objetivo do próprio instituto da recuperação, além de sobrecarregar os credores, já que os percentuais de redução negociados são naturalmente afetados pela tributação.

Um dos argumentos utilizados pelos contribuintes na defesa da não tributação do deságio era o de que a mera redução de passivo não configura receita tributável. Contudo a RFB sempre foi contrária a este entendimento e a pouca jurisprudência não é pacífica.

Essa discussão pode ser afetada negativamente pela lei 14.112/20, à medida que a norma, para instituir os benefícios, conceitua o deságio como “receita” para fins de incidência de PIS e COFINS e como “ganho” tributável por IRPJ e CSLL.

Independentemente disso, o argumento de lesão aos princípios da isonomia tributária e da capacidade contributiva é bastante coerente e deveria ser forte o suficiente para convencer o julgador de eventual demanda. Todavia, a natureza modificativa da lei e os seus reflexos na arrecadação tributária pode dificultar a vitória dos contribuintes.

Por fim, considerando a vigência prospectiva da lei 14.112/20, os benefícios tributários nela previstos podem ser aplicados, ao menos parcialmente, a recuperações judiciais em curso, caso seja possível defender, por exemplo, que o reconhecimento do deságio deve ser realizado apenas no cumprimento do plano de recuperação, assunto que merece outro artigo.

 

*Artigo postado originalmente no Migalhas.

(Im)possibilidade de flexibilização das condições de Plano de Recuperação Judicial

A Recuperação Judicial (RJ) visa renegociar dívidas mediante aprovação dos credores da empresa e, assim, possibilitar a continuidade da sua atividade empresarial. As novas obrigações são formalizadas por meio de um plano de recuperação que, via de regra, configura um planejamento financeiro, no qual são projetados os faturamentos e demonstrada a adequação da receita para pagamento das despesas regulares da atividade e das novas obrigações estabelecidas no plano para pagar as dívidas passadas.

Entretanto, a pandemia causada pelo COVID-19 pode afetar o regular cumprimento das condições dos planos aprovados e a consequência legal do seu descumprimento é a conversão da recuperação judicial em falência.

Nesse cenário e com esse fundamento, o Poder Judiciário já apreciou poucos pedidos de empresas em recuperação judicial para autorizar o descumprimento das obrigações estabelecidas no plano, sem aplicação da respectiva sanção. Esses pedidos foram apreciados e deferidos por Juízes de primeiro grau, sem manifestação dos credores, sendo que em um dos casos foi deferida a redução do pagamento de parcelas do plano com natureza alimentar (créditos trabalhistas) para garantir o aumento do fluxo de caixa e manutenção da atividade empresarial.

Em 31/03/2020, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) destacou que os processos de recuperação judicial são urgentes, impactam na continuidade da atividade empresarial e, consequentemente, na manutenção de empregos. Desse modo, o CNJ emitiu algumas recomendações referentes, tais como (i) que os Juízes priorizem a análise de pedidos de levantamento de valores pelos credores ou pelas empresas recuperandas; (ii) que assembleias de credores sejam realizadas por meio virtual, de forma a não obstar a continuidade dos processos; e (iii) a possibilidade de os Juízes autorizarem o devedor que esteja em fase de cumprimento do plano aprovado a apresentar um plano modificativo, o qual deverá ser submetido novamente à Assembleia Geral de Credores, devendo ser comprovado que a capacidade de cumprimento das obrigações foi diminuída pela crise decorrente da pandemia e condicionando ao adimplemento, até 20/03/2020, das obrigações assumidas no plano vigente.

Cumpre destacar que essa última recomendação destacada acima está de acordo com a Lei Falimentar, que condiciona a modificação do plano à apreciação e aprovação dos credores mediante Assembleia Geral. Todavia, as decisões judiciais proferidas antes do pronunciamento do CNJ não observaram essa norma.

Fato é que o atual cenário abre às empresas recuperandas a possibilidade de ajustar seu plano, desde que comprovado que a sua impossibilidade de cumprimento do ajuste anterior está atrelada à situação gerada pelo estado de calamidade pública. E, sendo seguidas pelo Judiciário as recomendações do CNJ e o texto da Lei de Falências, caberá aos credores apreciar os ajustes requeridos, devendo ponderar que sua intolerância para aprovar as novas condições pode transformar a recuperanda em falida e colocá-los em um cenário pior quanto à expectativa de recebimento do seu crédito.

 

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