As relações trabalhistas sempre ensejaram debates calorosos. Todavia, é certo que todo trabalhador possui o direito fundamental ao ambiente e condições de trabalho dignas. Em análise dos acontecimentos, históricos, percebe-se uma evolução significativa nas condições de trabalho, se entre os séculos 18 e 19, as condições de trabalho eram degradantes e precárias, sem a enfadonha atuação estatal, o século 20, muito em virtude da criação da Organização Internacional do Trabalho em 1919 e Declaração Universal dos Direitos Humanos em 1948, foi marcado pela reestruturação, ainda que parcial, das condições trabalhistas.
Ou seja, as relações trabalhistas passaram a ser vistas com novos olhares e, ainda que discutível, com mais cuidado e atenção. Não diferente, a Constituição de 1988, sobretudo no artigo 7º, trouxe avanços significativos para os direitos dos trabalhadores. Várias garantias já existentes na CLT receberam status constitucional, alguns direitos foram ampliados e outros incluídos.
Decerto que, na última década, a sociedade passou por um “boom” de modificações, tornando-a ainda mais fluída. Não diferente, as relações de trabalho não são estanques, se modificaram e, hoje, sem adentrar na temática de precarização, são altamente mutáveis.
Além disso, a sociedade passou por um processo de informatização muito acelerado. Hoje, o acesso a rede mundial dos computadores é quase uníssono. Tal modificação fez com que houvesse uma criação de um controle social, sobretudo por parte das mídias sociais.
Dito isso, as relações de trabalho, atualmente, sofrem muitas inflexões, acertadamente, em virtude do acesso à informação pela sociedade, ou seja, as relações de trabalho são facilmente, sejam elas positiva ou negativa, expostas à sociedade, o que pode gerar benefícios ou prejuízos, mormente no âmbito empresarial.
Recentemente¹, em uma ação conjunta do Ministério Público do Trabalho do Rio Grande do Sul (MPT-RS) com Secretaria de Inspeção do Trabalho do Ministério do Trabalho e Emprego, a Polícia Federal (PF) e a Polícia Rodoviária Federal, cerca de 200 trabalhadores foram resgatados de um alojamento e, segundo a informação, estariam sujeitos a situações degradantes de trabalho, o que, de acordo com o MPT-RS, estariam os trabalhadores em condições análogas à escravidão.
A notícia, per si, já é preocupante. Ocorre que, certamente, haverá desdobramentos, sobretudo para as vinícolas que haviam contratado a empresa acusada de submeter os trabalhadores àquela situação.
Tal situação não é algo isolado, somente em 2022, segundo informações do portal da inspeção do trabalho², 2575 trabalhadores foram encontrados em condições análogas à escravidão.
Diante disso, é importante entender os reflexos para o mundo empresarial e os possíveis riscos paras empresas de situações semelhantes ao que ocorrera no estado do Rio Grande do Sul. Conforme já relatado, a atual estrutura social é marcada pela globalização e com isso, pelo aumento dos riscos aos quais são submetidas as pessoas. Por certo, entende-se que as pessoas jurídicas são ainda mais sujeitas aos riscos de uma sociedade globalizada.
Muito em virtude disso, há uma crescente necessidade da implementação de um programa de compliance³. A procura das empresas por instituir um programa eficaz decorreu, em grande parte, das possíveis sanções da Lei nº 12.846/2013 — “Lei Anticorrupção”.
Percebe-se que, na seara trabalhista, em virtude da proteção ao trabalhador e do clamor social, a instituição do sistema de compliance deixa de ser uma faculdade para ser uma obrigação.
Em um sistema bem delineado e alinhado, a empresa consegue, a priori, prever e evitar diversas situações que sejam passíveis de autuações. É possível, por exemplo, avaliar os riscos nas contratações, realizar de auditorias, elaborar de código de ética e de conduta, instituir de canais de denúncia, dentre outras medidas preventivas.
Essa atuação preventiva é de suma importância no ramo empresarial, mormente em situações como a deflagrada pelo MPT-RS. Utilizando o caso concreto de trabalho em condição análoga à escravidão, as implicações podem ocorrer em várias searas.
Não se discute o direito do trabalhador à proteção especial, ante sua vulnerabilidade. A intenção do constituinte era propiciar um trabalho digno, em virtude da proteção à dignidade humana.
Para que direito ao trabalho digno seja assegurado, segundo Sepúlveda e Rocha:
“é necessário que a atividade seja devidamente regulamentada e sobre esta incidam as normas internacionais, constitucionais e infraconstitucionais — garantindo o direito à remuneração que promova a existência do trabalhador e sua família, o direito à segurança e higiene no trabalho, a proteção ao trabalho e emprego, a limitação razoável das horas de trabalho, entre outras garantias que assegurem a integridade físico-psíquica do trabalhador.” ⁴
A não caracterização de um trabalho digno, exsurgem três reflexos às empresas que merecem especial atenção. O primeiro reflexo é o dumping social. Essa prática pode ser conceituada em:
“[…] um fenômeno sócio-trabalhista que emerge na conjuntura global atual, na qual as empresas e os empregadores, tendo por finalidade precípua a maximização dos lucros e a minimização dos custos da produção, passam, de maneira inescusável e reincidente, a descumprir as obrigações legais trabalhistas e preceitos fundamentais garantidores das relações de emprego.”⁵
Em síntese, o dumping social seria uma prática das empresas que, mediante o descumprimento de obrigações trabalhistas, conseguem promover uma concorrência desleal, já que minimizam os custos e maximizam os lucros.
A Justiça Trabalhista vem utilizando este conceito para afirmar que reiteradas transgressões aos direitos trabalhistas reverberam para além da esfera individual. Assim sendo, seria possível o arbitramento de danos de natureza coletiva. Ou seja, a ausência de um programa de compliance trabalhista pode ensejar uma condenação bem superior que a simples reclamação trabalhista, já que o dano pode ser coletivo.
O segundo reflexo é o da responsabilização da cadeia produtiva. Sem se pretender esgotar esta temática, há fortes argumentos que levam a conclusão de que as empresas podem ser responsabilizadas subsidiaria ou solidariamente pelas infrações e débitos trabalhistas.
À guisa de exemplificação, respeitável doutrina justifica a responsabilização da cadeia produtiva pelo conceito de subordinação estrutural é, pois, “a subordinação que se manifesta pela inserção do trabalhador na dinâmica do tomador de seus serviços, independentemente de receber (ou não) suas ordens diretas, mas acolhendo, estruturalmente, sua dinâmica de organização e funcionamento.”⁶
Melhor dizendo, ainda que o tomador de serviços não dê o comando direto ao trabalhador, pode haver um modus operandi estabelecido pela empresa contratante e a terceirizada, o que ensejaria a responsabilização.
Há quem justifique a responsabilização das empresas contratantes pela teoria da cegueira deliberada, importada do Direito Penal⁷. Segundo essa teoria, é responsável pelo ilícito aquele que se omite quanto a um dever de razoável cautela.
Tal teoria pode ser utilizada para responsabilizar as empresas⁸ que, a despeito de não participarem diretamente do ilícito laboral, atuam de forma indiferente na contratação de outras prestadoras de serviços.
A realidade é que, independentemente da teoria adotada, as empresas poderão ser responsabilizadas pelas suas contratações. Apesar de haver um embate acerca da subsidiariedade ou solidariedade dessas empresas, a formalização de um programa eficiente de compliance é medida impositiva, a fim de minimizar os danos às empresas.
Por fim, não menos importante, os ilícitos laborais são prejudiciais à imagem e reputação da empresa. O descumprimento de preceitos laborais, sejam eles internacionais ou nacionais, estão sendo repudiados, sobretudo quando violam padrões socialmente aceitos, como a vedação à escravidão.
Ser atrelado ao trabalho escravo, por exemplo, é algo que deve trazer prejuízos à sociedade empresarial, ante sua latente reprovabilidade social, o que poderá resultar na redução da venda de seus produtos e serviços, mormente diante da rápida difusão da informação.
Outrossim, algumas condutas que ultrapassam o simples ilícito laboral, como a sujeição de seus trabalhadores a condições análogas à escravidão, ensejam a inclusão na “lista suja” com um cadastro de empregadores que exploram trabalhadores em condições de escravidão moderna. Inclusive, o Supremo Tribunal Federal já se manifestou acerca da constitucionalidade da referida lista, quando do julgamento da ADPF 509⁹.
Diante de tudo isso, as empresas necessitam cada vez mais desenvolver e implementar programas seguros de compliance, sobretudo na seara trabalhista. O compliance se torna uma ferramenta capaz de auditar os procedimentos internos da empresa, promovendo uma transformação organizacional, bem como propicia benefícios aos trabalhadores e para própria empresa, já que poderá haver uma redução no passivo de demandas trabalhistas.
O compliance é uma ferramenta importante para o controle de empresas que costumam terceirizar suas atividades, já que facilita a fiscalização de toda a cadeia produtiva, de modo que se evite problemas mais sérios, como o ocorrido nas vinícolas no Rio Grande do Sul.
Ademais, o programa de compliance promove uma maior credibilidade do ponto de vista institucional, vez que trará uma consolidação da empresa perante a sociedade em geral, o que promove um incremento perante investidores e parceiros.
É importante frisar, por fim, que o programa de compliance não impede a violação às leis trabalhistas, contudo é um valioso mitigador de problemas. Sem a pretensão de esgotar o tema, restou clara a necessidade salutar das empresas na instituição de um programa de integridade sólido e eficaz, possibilitando a mitigação de práticas ilícitas nas relações trabalhistas, o que, notadamente, reverbera em todo funcionamento da sociedade empresarial.
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¹ Força-tarefa resgata em torno de 200 pessoas em Bento Gonçalves Disponível em: https://www.prt4.mpt.mp.br/procuradorias/ptm-caxias-do-sul/11808-forca-tarefa-avalia-condicoes-de-trabalhadores-em-bento-goncalves. Acesso em: 03.03.2023
² Informação coletada em https://sit.trabalho.gov.br/radar/ Acesso em: 03.03.2023
³ “O programa de compliance consiste na criação e aplicação de políticas e procedimentos internos em uma empresa, os quais, precedidos de um estudo aprofundado da realidade pertinente, devem ser capazes de controlarem (e eliminarem, na medida do possível) os riscos de no compliance (em tradução livre, ‘não conformidade’) que atingem a empresa”. In: TRAPP, Hugo Leonardo do Amaral Ferreira..Compliance Na Lei Anticorrupção: Uma Análise Da Aplicação Prática Do Artigo 7º, VIII, Da Lei 12.846/2013 . Boletim Jurídico, Uberaba/MG, a. 23, nº 1237. Disponível em https://www.boletimjuridico.com.br/artigos/trabalhosacademicos/3421/compliance-leianticorrupcao-analise-aplicacao-pratica-art-7-viii-lei-12-8462013
⁴ SEPÚLVEDA, Gabriela e ROCHA, Andréa Presas. O trabalho em situação análoga à escravidão enquanto prática de gestão e seus reflexos para o mundo empresarial: os possíveis riscos para as empresas. Rev. TST, São Paulo, vol. 86, nº 3, jul/set 2020. P.202
⁵ ARAÚJO, Aline de Farias. A Necessária Repressão da Justiça do Trabalho aos casos de Dumping Social. In: Revista da ESMAT 13. Ano 4, vol. 4, 2011, p. 18 e segs. Disponível em: https://www.amatra13.org.br/arquivos/revista/REVISTA%20DA%20ESMAT%2013%20ANO%204%20N%204%20OUT%202011[PARA%20IMPRESS%C3%83O%20COM%20302%20PAGINAS].pdf
⁶ DELGADO, Mauricio Godinho. Curso de direito do Trabalho. 9ª ed. São Paulo: Ltr, 2010. p.305.
⁷ A teoria da cegueira deliberada, ou instruções de avestruz (ostrich instructions), consiste em instituto do direito criminal que, por meio da ampliação do espectro conceitual de autor e partícipe de delitos, possibilita a responsabilização criminal daqueles que, deliberadamente, evitam o conhecimento sobre o caráter ilícito do fato para o qual concorrem, ou acerca da procedência ilícita de bens adquiridos ou movimentados. In: Soares, J. O. (2019). A teoria da cegueira deliberada e sua aplicabilidade aos crimes financeiros. Revista Acadêmica Escola Superior Do Ministério Público Do Ceará, 11(2), 109–128. https://doi.org/10.54275/raesmpce.v11i2.91
⁸ “AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECURSO DE REVISTA INTERPOSTO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. TERCEIRIZAÇÃO ILÍCITA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. CONDIÇÕES ANÁLOGAS ÀS DE ESCRAVO 1. Ao contratar empresa inidônea, que mantém empregados em condições de trabalho análogas às de escravo mediante pacto no qual a redução de custos figura como objetivo a ser atingido, a tomadora de serviços torna-se coautora do ilícito cometido por aquela. 2. Tais circunstâncias atraem sua responsabilidade solidária pelos prejuízos causados, à luz do art. 942 do Código Civil. 3. Agravo de instrumento da Reclamada de que se conhece e a que se nega provimento” (AIRR-1345 20.2010.5.02.0050, 4ª Turma, relator ministro Joao Oreste Dalazen, DEJT 09/06/2017).
⁹ “ARGUIÇÃO DE DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL — CABIMENTO — SUBSIDIARIEDADE. A adequação da arguição de descumprimento de preceito fundamental pressupõe inexistência de meio jurídico para sanar lesividade — artigo 4º da Lei nº 9.882/1999. PORTARIA — CADASTRO DE EMPREGADORES — RESERVA LEGAL — OBSERVÂNCIA. Encerrando portaria, fundamentada na legislação de regência, divulgação de cadastro de empregadores que tenham submetido trabalhadores a condição análoga à de escravo, sem extravasamento das atribuições previstas na Lei Maior, tem-se a higidez constitucional. CADASTRO DE EMPREGADORES — PROCESSO ADMINISTRATIVO — CONTRADITÓRIO E AMPLA DEFESA — OBSERVÂNCIA. Identificada, por auditor-fiscal, exploração de trabalho em condição análoga à de escravo e lavrado auto de infração, a inclusão do empregador em cadastro ocorre após decisão administrativa irrecorrível, assegurados o contraditório e a ampla defesa. CADASTRO DE EMPREGADORES — NATUREZA DECLARATÓRIA — PRINCÍPIO DA PUBLICIDADE. Descabe enquadrar, como sancionador, cadastro de empregadores, cuja finalidade é o acesso à informação, mediante publicização de política de combate ao trabalho escravo, considerado resultado de procedimento administrativo de interesse público”. (ADPF 509, relator: MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 16/09/2020, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-242 DIVULG 02-10-2020 PUBLIC 05-10-2020).
*Artigo publicado originalmente no ConJur.