A Prefeitura Municipal de São Paulo tem se movimentado para cobrar o ISS que, supostamente, incidiria sobre a receita decorrente da antecipação de recebíveis feitas pelas empresas credenciadoras e subcredenciadoras de estabelecimentos comerciais, que recebem o pagamento dos seus clientes, por meio de cartão de crédito e débito.
A atividade das credenciadoras e subcredenciadoras é prevista na Lei 12.865/13, a qual é regulamentada pela Resolução da CVM n° 4.282/13.
De acordo com essa legislação, a instituição financeira emissora do cartão é o banco no qual o cliente possui conta bancária; o instituidor do arranjo de pagamento corresponde à “bandeira” do cartão, responsável por todo o arranjo de pagamento; o estabelecimento comercial é denominado pela legislação como “recebedor”, destinatário final dos recursos da transação de pagamento e; a instituição de pagamento é aquela que, aderindo a um ou mais arranjos de pagamento, tem como atividade, dentre outras, credenciar a aceitação de instrumento de pagamento.
Para que os referidos agentes (banco, bandeira do cartão e instituição de pagamento credenciadora) sejam devidamente remunerados pelo serviço que prestam, há a cobrança de uma taxa de desconto sobre o valor da transação (Taxa MDR).
O cliente da loja faz a autorização do pagamento, a qual é recepcionada pelo banco emissor do cartão, que retem a taxa de desconto que lhe é devida. O valor remanescente é enviado à instituição de pagamento credenciadora, que deduz o montante relativo à taxa a ser remetida por ela à bandeira do cartão e o valor correspondente a sua parcela, sendo o montante residual entregue ao lojista (recebedor).
A instituição de pagamento credenciadora dos pagamentos presta serviços de administração de cartão de crédito e débito, devendo sujeitar as suas receitas (sua parcela da Taxa MDR) à incidência do ISS, conforme previsto no item 15.01 da LC 116/03.
A Instrução Normativa SF/Surem 13/2011 da Prefeitura de São Paulo é ainda mais específica ao prever a incidência do ISS sobre a atividade desempenhada pelas credenciadoras: “Administração de cartão de crédito ou débito e congêneres, inclusive os serviços de credenciamento, de administração da rede de estabelecimentos e de captura e transmissão das transações”. Neste sentido, não há dúvidas de que a referida prestação de serviços de credenciamento está sujeita à incidência do ISS.
Dentro do referido arranjo de pagamento, os lojistas são os clientes e tomadores dos serviços prestados pelas empresas credenciadoras. Ou seja, são eles que contratam essas empresas para que possam receber os pagamentos por meio dos cartões de crédito e débito. É bastante comum os lojistas receberem os valores do pagamento realizado por seus clientes após um período de, aproximadamente, 30 dias, ou de alguns meses, nos casos em que as compras são parceladas no cartão.
Neste cenário, por conta da necessidade de fluxo de caixa, muitas vezes os estabelecimentos comerciais necessitam receber os valores que lhes são devidos antes do prazo previsto para tanto, razão pela qual recorrem à antecipação do recebimento dos valores, antes do seu vencimento.
Nessa operação de antecipação de recebíveis, a instituição credenciadora celebra contrato com os lojistas obrigando-se a entregar-lhes o valor decorrente do pagamento antes do vencimento e, em contrapartida, os lojistas autorizam a empresa a descontar uma parcela do valor da transação.
Diferentemente dos contratos de empréstimo ou de cessão de crédito, na antecipação de recebíveis, ocorre a liquidação de uma obrigação própria da credenciadora em momento anterior ao contratualmente previsto, mediante a entrega de valores com um deságio acordado entre as partes.
O deságio cobrado pelas credenciadoras em razão da antecipação dos recebíveis não se confunde com a parcela da Taxa MDR cobrada por estas empresas, em razão da prestação dos serviços de administração de cartão de crédito ou débito.
Apesar disso, o município de São Paulo tem entendido que tais valores devem ser tributados pelo ISS por consistir em serviços de cobranças, recebimentos ou pagamentos em geral, conforme previsto no item 15.10, da lista anexa a LC 116/03. No entendimento das autoridades fiscais municipais, ao receber um valor para antecipar as transações realizadas com cartões de crédito e débito, há prestação de serviço descrito no item 15.10.
Neste sentido, as questões a serem respondidas no presente artigo são: as receitas decorrentes do deságio na antecipação de recebíveis possuem natureza financeira? Poderia o município de São Paulo enquadrar as referidas receitas como prestação de serviços de cobrança, recebimento ou pagamentos em geral, para cobrar o ISS?
Todas as vezes em que determinado capital é colocado à disposição de outra pessoa, mediante a cobrança de determinada taxa de desconto ou deságio, estamos diante de uma operação de crédito, que gera uma receita financeira. No julgamento da ADI 1.763, o STF definiu as operações de crédito como: “negócios ou transações realizados com a finalidade de se obterem imediatamente recursos que, de outro modo, só poderiam ser alcançados no futuro, possuindo, como regra, elementos relevantes como a confiança, o tempo, o interesse e o risco”.
O Decreto-Lei 1.598/77 trata de forma ampla as receitas financeiras como os juros, o desconto, a correção monetária pré-fixada, ganhos pelo contribuinte, determinando a sua inclusão no lucro operacional.
Por qual motivo a credenciadora é remunerada? A sua remuneração não decorre da prestação de um serviço de cobrança, de pagamento e de recebimento, mas sim da colocação à disposição do lojista de um crédito que ele não teria acesso.
O fato de a disponibilização do montante ser feita pela credenciadora como uma antecipação de um valor que será devido no futuro ao cliente, não altera em nada a natureza de receita financeira. Da mesma maneira, o fato de aquele valor ser antecipado pela mesma empresa que presta os serviços de administração de cartão de crédito e débito, também não altera a natureza da receita financeira, que decorre do fato de determinado valor ser colocado à disposição de terceiros mediante a cobrança de uma taxa de desconto.
No recente julgamento da ADI 1.763, o Supremo Tribunal Federal reconheceu que a antecipação de recebíveis caracteriza operação de crédito por dar ao empresário acesso a crédito que ele, em condições normais, só obteria no futuro, enfatizando que o elemento mais relevante para a caracterização das operações de crédito é a antecipação dos recursos no tempo, assim como ocorre na antecipação de recebíveis aqui abordada. Assim, inegável a natureza de financeira a receita decorrente da antecipação de recebíveis.
Respondida a primeira pergunta, passamos para a segunda: poderia o município de São Paulo enquadrar as referidas receitas financeiras como prestação de serviços de cobrança, recebimento ou pagamentos em geral, para efeito de incidência do ISS? Entendemos que a resposta seja negativa, já que as receitas financeiras decorrem de uma operação de crédito, que não pode ser objeto de incidência do ISS.
Caso fosse possível a incidência do ISS, os municípios automaticamente invadiriam a competência tributária da União, a quem cabe a cobrança do IOF.
Ao dispor sobre a incidência do ISS sobre os serviços relacionados ao setor bancário ou financeiro (Item 15 da lista), em nenhum momento a LC 116/03 previu a possibilidade de cobrança do ISS sobre as receitas financeiras decorrentes das referidas atividades. Todos os subitens do Item 15 da lista anexa a LC 116/03 constituem atividades que geram receita de prestação de serviços, mas que não possuem natureza financeira, ou seja, não decorrem da intermediação ou disponibilização de determinado valor a terceiros mediante a cobrança de determinada taxa de juros ou de desconto.
Assim, por exemplo, é passível de incidência pelo ISS a taxa cobrada pelos bacos em razão da abertura de contas em geral, mas não os juros cobrados em razão de empréstimos pré-aprovados para os titulares dessas contas bancárias.
Da mesma maneira, é passível de incidência pelo ISS a emissão, reemissão, alteração, cessão, substituição, cancelamento e registro de contrato de crédito e o estudo, análise e avaliação de operações de crédito, mas não os juros cobrados em razão desses contratos.
A Súmula 588 do STF foi editada seguindo justamente essa linha de raciocínio: “O imposto sobre serviços não incide sobre os depósitos, as comissões e taxas de desconto, cobrados pelos estabelecimentos bancários”.
Nota-se que os serviços relacionados ao setor bancário e financeiro previstos na lista anexa a LC 116/03, são prestados, como regra, como atividade-meio de operações de crédito, câmbio, seguro, não gerando o recebimento de receitas financeiras.
Apesar de não constar do Item 15, da lista anexa à LC 116/03, o serviço de factoring (Item 10.04) é outro exemplo de que o ISS não pode recair sobre as receitas financeiras. Apesar de a LC 116/03 prever a incidência do ISS sobre os serviços de factoring, não se admite a sua incidência sobre as receitas financeiras decorrentes da compra de direitos creditórios resultantes de vendas mercantis a prazo ou de prestação de serviços.
A jurisprudência do STJ é pacífica no sentido de que, nos serviços de factoring, a base de cálculo do ISS corresponde ao preço do serviço cobrado, sem inclusão da receita financeira obtida em decorrência da diferença de compra do título e do valor recebido do devedor.
Em todos estes casos em que há o recebimento de receita financeira, mesmo que esteja relacionada a serviços bancários, a Lei Complementar nem poderia prever a cobrança do ISS, uma vez que a competência para tributar estas receitas é da União, por meio do IOF, por se tratar de operações de crédito, câmbio e seguro.
Em resumo, resta claro que, tratando-se de receitas financeiras decorrentes de qualquer atividade, seja ela de administração de fundos, administração de cartão de crédito ou débito, de abertura de contas, de factoring, etc, não há que se falar na incidência do ISS.
Dessa forma, conclui-se que as receitas financeiras decorrentes da antecipação de recebíveis auferidas pelas credenciadoras têm nítida natureza de receita financeira, decorrente de operação de crédito e, portanto, não são passíveis de incidência pelo ISS.
*Artigo publicado originalmente no ConJur.