A remissão deve ser concedida para todos os créditos tributários constituídos com a finalidade de neutralizar benefícios fiscais irregulares
A novela sem fim da guerra fiscal em matéria de ICMS parece ter aberto mais um de seus intermináveis capítulos, após a publicação do Convênio nº 200/22. A concessão de incentivos fiscais pelos Estados, para atrair os empreendimentos para os seus territórios, sempre foi uma prática comum. O grande problema é que boa parte desses incentivos era concedida em desacordo com a Constituição e a Lei Complementar nº 24/75, ou seja, sem a aprovação do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz), abrindo a possibilidade para que os demais Estados não reconhecessem os benefícios concedidos e glosassem o crédito apropriado pelos adquirentes das mercadorias, com base no mecanismo previsto na própria Lei Complementar nº 24/75.
A perversidade dessa situação era assustadora na medida em que quem acabava pagando essa conta era o adquirente da mercadoria, que não era o efetivo beneficiário do incentivo. Apesar do absurdo que essa dinâmica representava, tinha previsão legal e foi validada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento do Recurso Extraordinário do Tema 490 (RE 628.075).
Com a finalidade de colocar um ponto final nessa perversa sistemática, foi promulgada a Lei Complementar nº 160/17, dispondo que os Estados poderiam celebrar convênio prevendo a remissão dos créditos tributários constituídos em razão da invalidação de incentivos fiscais concedidos sem a aprovação do Confaz. Os Estados celebraram então o Convênio nº190/17 prevendo a referida remissão, exigindo o cumprimento de diversas condições, como a publicação da relação dos atos normativos, dentre outras.
O Convênio nº 190/17 foi celebrado em um contexto em que tanto as empresas como os Estados já não suportavam mais os problemas econômicos e as distorções geradas em razão dessa guerra fiscal. Nesse cenário, os entes federativos reconheceram os seus pecados e todos eles concordaram em perdoar uns aos outros, superando problemas passados e buscando harmonia fiscal entre eles. Por óbvio, todos os Estados precisariam remitir os créditos uns dos outros para que não se gerasse uma distorção e um Estado tivesse os seus incentivos fiscais irregulares validados e, ao mesmo tempo, não validasse os benefícios concedidos por seus vizinhos.
Assim, após o cumprimento de todos os requisitos e condições previstos no Convênio nº 190/17, a expectativa era de que todos os Estados remitissem os créditos tributários uns dos outros e fosse colocado um ponto final no assunto. De fato, a maioria dos Estados cumpriu o acordado e remitiu os créditos tributários, mas um deles em especial, o Estado de São Paulo, não cumpriu o acordado.
Para se proteger dos incentivos fiscais irregulares concedidos pelos demais entes a produtos sujeitos ao regime de substituição tributária, o Estado de São Paulo desenvolveu uma engenharia fiscal bastante complexa, que consiste na cobrança, do adquirente em seu território, da diferença do ICMS-ST devido em decorrência de incentivos fiscais irregulares concedidos ao remetente das mercadorias, estabelecido em outro Estado.
Esse mecanismo de cobrança tem exatamente a mesma finalidade da glosa de créditos: invalidar o incentivo fiscal irregular concedido por outro Estado ao remetente da mercadoria. Nos casos em que a mercadoria está sujeita ao ICMS-ST, não há apropriação do crédito pelo adquirente, restando como única alternativa para a neutralização do benefício irregular a cobrança do ICMS-ST.
Ocorre que o Estado de São Paulo, ao apreciar os pedidos de remissão dos créditos decorrentes da cobrança de ICMS-ST em razão da concessão de incentivos fiscais irregulares, vem mantendo o entendimento de que nem a Lei Complementar nº 160/17 nem o Convênio nº 190/17 previram a remissão dos créditos nas situações em que a neutralização do benefício fiscal é feita via cobrança de ICMS-ST. Veja-se a contradição: o Estado de São Paulo reconhece que a cobrança do ICMS-ST é feita nessas situações para neutralizar os incentivos fiscais irregulares, mas, ao mesmo tempo, defende a remissão somente nos casos em que há glosa de crédito.
Como os entes compreendiam a necessidade de se colocar um fim à guerra fiscal, independentemente da forma de cobrança dos créditos e, para solucionar essa equivocada interpretação, foi celebrado o Convênio nº 200/22, que esclarece que a remissão se refere também aos casos em que a invalidação do incentivo fiscal é feita via cobrança do ICMS-ST. Todavia, o Estado de São Paulo, mostrando não só a sua má vontade com a solução desse grave problema, mas também a sua deslealdade para com os demais entes, não ratificou o Convênio nº 200/22.
Assim, enquanto os outros entes reconhecem a remissão dos créditos tributários, independentemente da forma em que são cobrados, seja por meio da glosa de créditos, seja por meio da cobrança de ICMS-ST, o Estado de São Paulo faz questão de continuar mantendo esse caos fiscal. Todavia, a equivocada interpretação da LC nº 160/17 e do Convênio nº 190/17 não faz o menor sentido, na medida em que a remissão deve ser concedida para todos os créditos tributários constituídos com a finalidade de neutralizar benefícios fiscais irregulares, independentemente da forma pela qual ocorre a cobrança. Espera-se que o Poder Judiciário corrija essa desleal interpretação equivocada do Estado de São Paulo.
*Artigo publicado originalmente no Valor Econômico.