Há quase 03 anos, presenciávamos a finalização do julgamento do Recurso Especial nº 1.221.170, tema 779, sob rito dos repetitivos do Superior Tribunal de Justiça (STJ), que, por maioria de votos, consolidou o entendimento da Corte acerca dos critérios de essencialidade e relevância para fins do aproveitamento dos créditos de PIS e Cofins, oportunidade em que foi declarada a ilegalidade das Instruções Normativas SRF 247/2002 e 404/2004.
Apesar de o resultado preliminar ter sido considerado uma vitória aos contribuintes, a discussão ainda não foi encerrada, tendo em vista a interposição de Recurso Extraordinário (RE) que pleiteou o sobrestamento dos autos até o julgamento do RE 841.979, tema 756 da repercussão geral, a ser apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF).
O tema 756 retomou a atenção dos contribuintes após ser pautado para julgamento no início de outubro de 2021; entretanto, após pedido da empresa autora do leading case, os autos foram retirados de pauta e aguardam nova inclusão.
A discussão abarcada nos autos do RE 841.979 reveste-se de extrema relevância e sua conclusão pode, inclusive, alterar os rumos traçados pelo REsp 1.221.170. Isso porque, enquanto naquele caso o STJ discutia a melhor interpretação para o termo “insumo”, consoante o inciso II do artigo 3º das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, neste caso, o STF apreciará justamente a constitucionalidade dos referidos dispositivos à luz da interpretação do parágrafo 12 do artigo 195 da Constituição Federal.
O leading case do tema 756 refere-se a mandado de segurança, impetrado por empresa dedicada à industrialização e à comercialização de bens de consumo, que busca o reconhecimento do direito ao aproveitamento de créditos de PIS e Cofins sobre todas as aquisições de bens e serviços, dentre as quais os dispêndios com publicidade, propaganda, intermediação, corretagem, despesas financeiras, mão-de-obra, vigilância, entre outros – inclusive, aqueles não tributados na etapa anterior.
Segundo a argumentação do contribuinte, o parágrafo 12 do artigo 195, instituído por meio da Emenda Constitucional 42/2003, autorizou, em plano constitucional, a criação da sistemática não-cumulativa das contribuições sociais, que já havia sido introduzida pelas Medidas Provisórias 66/2002 e 135/2003 (convertidas posteriormente nas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003), em sede das quais foram especificadas as regras a serem aplicadas pelas pessoas jurídicas (industriais, comerciais e prestadoras de serviço) que a este regime se sujeitariam.
Ocorre que o constituinte conferiu ao legislador infraconstitucional exclusivamente a prerrogativa de definir os setores de atividades que se sujeitariam à sistemática da não-cumulatividade. Porém, a partir das mencionadas leis, foram impostas, em seu artigo 3º, efetivas restrições aos créditos de PIS e Cofins, em medida flagrantemente inconstitucional.
O parecer da Procuradoria-Geral da República, por sua vez, defendeu o não conhecimento do RE 841.979, solicitando que os autos sejam julgados pelo Superior Tribunal de Justiça como recurso especial e, subsidiariamente, pleiteou que fosse fixada tese no sentido de que a não-cumulatividade do PIS e da Cofins pode ter seus contornos definidos pela legislação infraconstitucional, conforme autorização do parágrafo 12 do artigo 195 da CF, e que o modelo instituído pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 deve ser interpretado tomando-se como parâmetro a base de cálculo dos tributos, isto é, a receita ou o faturamento[1].
Entretanto, a interpretação da União não pode prevalecer, sob risco de se colocar em xeque a própria exegese constitucional da não-cumulatividade do PIS e da Cofins, além de transgredir importante princípio da isonomia tributária.
Para entendermos melhor a controvérsia e a sua importância ao cenário jurídico atual, devemos fazer uma breve regressão ao regime não-cumulativo das contribuições no ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme anteriormente mencionado, o regime não-cumulativo do PIS e da Cofins, instituído na forma da Emenda Constitucional 42/2003, outorgou ao legislador infraconstitucional a competência estrita para que pudesse definir para quais setores econômicos seria possível a aplicação desta sistemática.
Com isso, o objetivo pretendido no parágrafo 12 do artigo 195 foi alcançado por meio do artigo 8º da Lei 10.637/2002 e do artigo 10 da Lei 10.833/2003, que arrolaram as empresas (e receitas) que estariam fora da sistemática não-cumulativa da incidência do PIS e da Cofins. Assim, ao contrário do que objetiva a União, não caberia ao legislador, especialmente com fulcro no dispositivo em referência, delimitar os critérios da não-cumulatividade inerentes ao PIS e à Cofins.
O princípio da não-cumulatividade do PIS e da Cofins visa a evitar a incidência em cascata das contribuições sociais para desonerar os setores empresariais abrangidos por essa sistemática, de modo a fazer com que cada agente da cadeia arque com seu ônus apenas sobre o valor agregado ao produto. O objetivo é permitir que todo e qualquer dispêndio que viabilize o faturamento seja passível de aproveitamento, calculado sobre valores relativos a custos e despesas operacionais em geral (sistemática “base contra base”).
A sistemática “base contra base” é o que viabiliza que o contribuinte apure créditos à alíquota global de 9,25%, ainda que adquira de fornecedor que esteja sujeito ao regime cumulativo ou ao Simples Nacional, fato que justifica, inclusive, o aproveitamento de créditos quando as aquisições não tenham sofrido tributação. Vale rememorar que, à época da instituição da sistemática não-cumulativa do PIS e da Cofins, a própria Receita Federal do Brasil era assente nesse sentido[2].
Assim, temos que o princípio da não-cumulatividade do PIS e da Cofins é pleno. Portanto, a limitação do alcance da não-cumulatividade do PIS e da Cofins introduzida pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2003, por arbitrar quais custos e despesas são passíveis ou não de crédito e, ainda, vinculá-los ao processo produtivo ou de prestação de serviços, é diametralmente contrária à determinação constitucional.
A intenção do constituinte ao permitir a sistemática da não-cumulatividade do PIS e da Cofins foi o de conferir maior eficiência econômica, visando corrigir distorções decorrentes da cobrança cumulativa dos tributos em determinados setores. Entretanto, a partir de estudos econômicos, na forma como atualmente são aplicadas, as alíquotas efetivas do PIS e a Cofins não-cumulativos representam maior onerosidade do que aquelas do PIS e Cofins do regime cumulativo, inclusive, com impactos econômicos distintos dentro do próprio regime não-cumulativo, a depender do setor da atividade.
Tal desequilíbrio é perfeitamente ilustrado pela recente vitória de contribuinte que teve o direito ao crédito das contribuições sobre despesas com proteção de dados, derivadas da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), reconhecido pela Justiça Federal de Campo Grande – MS[3], cujo entendimento enquadrou tais dispêndios como “insumos” incorridos por “imposição legal”. Neste caso, a empresa conta com uma linha produtiva em meio à sua principal atividade comercial, fato que afastou a discussão sobre a possibilidade de empresas comerciais descontarem créditos sob a rubrica de insumos.
As demais empresas comerciais, cuja sujeição às mesmas regras de proteção de dados também é obrigatória, não detêm o mesmo direito de aproveitamento dos créditos, de modo que são colocadas em nítida desvantagem perante as empresas industriais por sofrerem uma aplicação mais onerosa da incidência do PIS e da Cofins.
Outro exemplo é a Solução de Consulta Cosit nº 164/2021, em que a RFB reconhece o direito ao crédito de despesas relacionadas à proteção contra a Covid-19 (máscaras de proteção, álcool em gel, luvas) pelo enquadramento como insumos, mas apenas quando destinadas aos funcionários da área produtiva. Ora, sendo a Covid-19 uma pandemia de impactos globais, não só as indústrias foram obrigadas (por lei, inclusive) a aderirem a medidas de prevenção e combate à doença, a despeito de que, na sistemática atual, apenas estas empresas podem descontar créditos sobre tais despesas.
Todas as vitórias dos contribuintes nessa seara se deram sob a ótica da interpretação da legislação infraconstitucional; contudo, apenas o STF tem a prerrogativa de julgar pela sua inconstitucionalidade. Dessa forma, o resultado do RE 841.979 pode ser um verdadeiro divisor de águas na temática da não-cumulatividade dessas contribuições sociais.
Em outras palavras, o julgamento do RE 841.979 tem o poder de trazer equilíbrio e isonomia aos contribuintes, caso o resultado se dê pela inconstitucionalidade do artigo 3º das Leis 10.637/2002 e 10.833/2003 à luz do parágrafo 12 do artigo 195 da Constituição Federal. Com isso, os contribuintes poderão creditar-se de todos os dispêndios incorridos na atividade empresarial que contribuam para a geração de receitas, dando maior eficácia àquilo que se buscou ao se instituir este regime tributário.
Então, só nos resta aguardar o desfecho desta que parece ser a tese, não apenas do século, mas do milênio, dada a magnitude de seu impacto tanto para os contribuintes, como para a União.
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[1] “A não cumulatividade incidente quanto às contribuições sociais ao PIS e à Cofins pode ter seus contornos definidos pela legislação infraconstitucional, conforme autorização constante do art. 195, § 12, da Constituição da República, com a redação conferida pela EC 42/2003. O modelo instituído pelas Leis 10.637/2002 e 10.833/2033 deve ser interpretado tomando-se como parâmetro a base de cálculo dos tributos em análise (i.e., a receita ou o faturamento, consoante o art. 195, I, b, da Lei Maior após a EC 20/1998).”
[2] “EMENTA: CRÉDITOS. INSUMOS. A pessoa jurídica terá direito ao desconto de crédito relativo ao PIS/Pasep, decorrente da aquisição de matéria-prima utilizada como insumo na fabricação de seus produtos, mesmo que não tenha havido a incidência da referida contribuição na operação de compra do insumo.” (Solução de Consulta nº 02, de 13 de janeiro de 2004).
[3] Mandado de Segurança nº 5003440-04.2021.4.03.6000
*Artigo postado originalmente no Estadão.