o contexto do conflito instaurado entre Estados e Municípios para tributar os negócios da economia digital, recentemente foi publicado o Convênio 106/2017, que traz as regras gerais para a cobrança do ICMS nas operações com os chamados “bens digitais” concretizadas por meio de transferência eletrônica de dados.
Não se trata de uma completa inovação, pois o Convênio 181/2015 já apontava essas operações como suscetíveis à incidência do imposto estadual. A novidade restringiu-se à criação das normas gerais para a cobrança do imposto nessas operações, bem como à extensão da incidência para os casos em que a disponibilização se dá por intermédio de pagamentos periódicos.
Nesse contexto, o escopo deste artigo é lançar breves reflexões1 sobre as impropriedades desses Convênios para tratar dos temas por eles tratados, sem adentrar na possibilidade material de incidência do ICMS sobre essas operações.
Problemas funcionais dos Convênios 181/2015 e 106/2017
O Convênio 181, sob o pretexto de autorizar os Estados a conceder benefício fiscal, determina a incidência do ICMS sobre as operações com softwares, programas, jogos eletrônicos, aplicativos, arquivos eletrônicos e congêneres, padronizados, ainda que sejam ou possam ser adaptados, disponibilizados por qualquer meio, inclusive nas operações efetuadas por transferência eletrônica de dados. O Convênio 106 estende a incidência à disponibilização periódica de tais bens, conforme Cláusula Terceira.
Ocorre que essas operações nunca foram objeto de lei nacional, razão pela qual são novas hipóteses de incidência de ICMS. Essa constatação resulta da leitura da LC 87/96, lei geral do ICMS em âmbito nacional, que aponta que a incidência do imposto está condicionada à “saída” das mercadorias do “estabelecimento”, situação incompatível com as operações envolvendo bens incorpóreos.
Com efeito, o art. 11, § 3º, da LC 87/96, define estabelecimento como “o local, privado ou público, edificado ou não, próprio ou de terceiro, onde pessoas físicas ou jurídicas exerçam suas atividades em caráter temporário ou permanente, bem como onde se encontrem armazenadas mercadorias”. Essa definição ressalta o caráter físico do estabelecimento comercial, no qual deverá ocorrer a operação mercantil para fins de incidência do ICMS. Mesmo nos casos em que não seja possível a determinação do estabelecimento, a LC 87/96 se serve de coordenadas físicas para determinar o local da ocorrência do fato gerador, ao apontar “o local em que tenha sido efetuada a operação ou prestação” ou “encontrada a mercadoria” (inc. I).
Logo, se a ocorrência do fato gerador do ICMS, nos termos da LC 87/96, está vinculada à saída física da mercadoria de um estabelecimento físico, (i) a LC 87/96 é imprestável para a circulação dos bens digitais e (ii) a ausência de definição de coordenadas básicas para a incidência do imposto, na LC 87/96, revela que os Convênios 181 e 106 inovam no sistema tributário nacional, ao criar hipóteses de ICMS de todo novas.
Tudo isso é confirmado pela legislação criada posteriormente ao Convênio 181, como é o caso do Decreto de São Paulo 61.791/2016, que o regulamenta internamente. Esse Decreto, ao estabelecer que o ICMS não seria cobrado nas operações realizadas por meio de transferência eletrônica de dados (download ou streaming) até que ficasse definido o local de ocorrência do fato gerador (para fins de determinação do estabelecimento responsável pelo pagamento do imposto), claramente reconhece a inovação da incidência do ICMS sobre operações com bens digitais. Caso contrário, seria inútil a previsão e possível a cobrança.
Além disso, a publicação do Convênio 106 é um reconhecimento tanto de SP quanto dos demais Estados de que os bens digitais nunca estiveram sujeitos ao ICMS, pois a adoção de normas gerais e básicas para a incidência revela que tais operações estiveram à margem do imposto estadual até então.
Da constatação de que os Convênios 181 e 106 criaram novas hipóteses de incidência do ICMS decorre a maior invalidade funcional de ambos, que de forma alguma são instrumentos aptos para inovar no sistema tributário brasileiro, mesmo que se admita que as hipóteses criadas encontram guarida na CF/88. Conforme já tive a oportunidade de manifestar em outras ocasiões e foros2, embora o sistema aceite a utilização de convênios na instituição de normas tributárias, considerando que tais veículos normativos são produzidos por membros do Poder Executivo sem a participação do Legislativo, são escassas as hipóteses dessa utilização, por serem medidas deexceção ao princípio da legalidade. Por essa razão, os convênios firmados entre os Estados têm limites constitucionais e legais bem delimitados.
Em termos gerais, esses veículos normativos são adotados para (i) regulamentar a prestação de assistência para a fiscalização de tributos e permuta de informações, conforme art. 199, do CTN; (ii) delimitar hipóteses de concessões de isenções, benefícios e incentivos fiscais, nos moldes do art. 155, § 2º, XII, “g”, da CF/88, e da LC 24/75; (iii) tratar de substituição tributária em operações interestaduais (art. 9º, caput, da LC 87/96); e (iv) padronizar obrigações acessórias entre os Estados. O sistema tributário brasileiro não permite sua utilização para qualquer outra situação, muito menos para a criação originária de nova hipótese de incidência tributária, que reclama lei formal.
Embora os convênios tenham servido para veicular normas gerais de ICMS, com a promulgação da CF/88 essa possibilidade passou a ser absolutamente temporária e limitada3, conforme o art. 34, § 8º, do ADCT, justamente em função do regime de exceção desse dispositivo. Nessa linha, a competência provisória dos convênios foi definitivamente interrompida com a edição da LC 87/96, que definiu o regramento geral do imposto estadual em todo o país.
O STF seguiu a mesma linha no julgamento da ADIn 4.1714, ao declarar a inconstitucionalidade de regras do Convênio 110/2007 que criaram nova hipótese de incidência do ICMS e, assim, extrapolaram as competências dessa espécie normativa. Em outro julgamento (ADINs 4.628 e 4.713), o STF delimitou o âmbito restrito de aplicação de convênios e protocolos em matéria de ICMS e também rechaçou a criação de nova hipótese de incidência por tais veículos normativos5, conforme excertos da ementa da ADIn 4.628:
4. Os Protocolos são adotados para regulamentar a prestação de assistência mútua no campo da fiscalização de tributos e permuta de informações, na forma do artigo 199 do Código Tributário Nacional, e explicitado pelo artigo 38 do Regimento Interno do CONFAZ (Convênio nº 138/1997). Aos Convênios atribuiu-se competência para delimitar hipóteses de concessões de isenções, benefícios e incentivos fiscais, nos moldes do artigo 155, § 2º, XII, g, da CRFB/1988 e da Lei Complementar nº 21/1975, hipóteses inaplicáveis in casu.
(…)
10. Os Estados membros, diante de um cenário que lhes seja desfavorável, não detém competência constitucional para instituir novas regras de cobrança de ICMS, em confronto com a repartição constitucional estabelecida. (…) (Pleno, rel Min. LUIZ FUX, j. em 17/09/2014, DJ de 24/11/2014).
Essas decisões também reconheceram a inaplicabilidade do art. 34, § 8º, do ADCT, após a LC 87/96, o que tolhe qualquer liberdade do Confaz para inovar em termos de hipóteses de incidência de ICMS.
Os reflexos práticos do posicionamento do STF, lançado nas ADINs 4.171, 4.628 e 4.713, fulminam totalmente a intenção dos Estados manifestada nos Convênios 181 e 106, que têm a intenção de, indevidamente, tributar novas operações pelo imposto estadual. Nem mesmo eventual desfecho favorável aos Estados, no julgamento da ADIn 1.9456, reverteria esse quadro, eis que se trata de latente inconstitucionalidade formal dos aludidos Convênios.
Além da invalidade apontada acima, o Convênio 106 também viola outros pontos da CF/88 e da LC 87/96 ao (pretensamente) estabelecer normas gerais de ICMS, sobretudo ao adotar conceito próprio de “estabelecimento” virtual (Cláusula quarta), considerar todas as operações interestaduais como internas (Cláusulas terceira e quarta) e trazer regras de sujeição passiva tributária (Cláusula quinta), a saber:
(a) Repartição do ICMS nas operações interestaduais: ao estabelecer que o ICMS será todo devido aos Estados dos adquirentes, o Convênio viola o art. 155, § 2º, VII, “b”, da CF/88, que expressamente impõe a adoção de alíquotas interestaduais;
(b) Pacto federativo e autonomia municipal: o Convênio contraria a cláusula pétrea prevista nos arts. 1º, caput, e 18, caput, e garantida pelo art. 60, § 4º, I, da CF/88, pois a concentração do ICMS no Estado de destino interfere no repasse do produto da arrecadação do ICMS dos Estados aos municípios (art. 158, IV, da CF/88), o que pode gerar perda de receitas aos entes municipais (e diminuição de sua autonomia);
(c) Competência privativa do Senado Federal para determinar alíquotas interestaduais de ICMS: ao zerar o ICMS devido aos Estados de origem nas operações interestaduais, o Convênio viola o art. 155, § 2º, IV, da CF/88, que prevê que resolução do Senado Federal deve estabelecer as alíquotas aplicáveis às operações interestaduais;
(d) LC 95/98: ao determinar que os contribuintes (sites ou plataformas eletrônicas) deverão se inscrever nos Estados em que praticarem saídas internas ou de importação destinadas a consumidor final, o Convênio adota engenhoso jogo de palavras para, de maneira confusa, deslocar a competência tributária para os Estados dos consumidores, o que fere o art. 11, II, “a” e “c”, da LC 95/98, que exige clareza e precisão dos textos normativos. Essa falta de clareza também é percebida no ponto em que trata da “responsabilidade” sem especificar se é o caso de solidariedade ou de responsabilidades solidária/subsidiária ou de terceiros;
(e) Indevido conceito de “estabelecimento” para fins de ICMS: o Convênio adota um conceito próprio de “estabelecimento” que viola a imposição constitucional de utilização de lei complementar para a instituição de normas gerais em matéria tributária (art. 146, CF/88) e os arts. 109 e 110, do CTN, cuja interpretação sistemática aponta que os institutos de direito privado, quando não tenham recebido tratamento específico da lei tributária, devem ser levados em conta na interpretação das regras de tributação;
(f) Competência privativa de lei complementar para estabelecer o local da ocorrência do fato gerador: considerando que define “estabelecimento” também para apontar o local da ocorrência do fato gerador do ICMS, o Convênio viola matéria de competência exclusiva de lei complementar, nos termos do art. 155, XII, “d”, da CF/88;
(g) Indevida definição de sujeição passiva de ICMS: ao definir a sujeição passiva tributária nas operações com bens digitais, o Convênio invade matéria que é de competência exclusiva de lei complementar, conforme art. 155, XII, “a”, da CF/88;
(h) Ilegalidade na incidência de ICMS na importação de “bens digitais”: essa determinação viola frontalmente o art. 12, IX, da LC 87/96, que aponta que o ICMS devido na importação tem como momento de incidência o desembaraço aduaneiro (não há qualquer desembaraço aduaneiro nas operações envolvendo bens digitais);
(i) Violações à LC 116/03: o Convênio prevê a incidência do ICMS também nas operações com software e nas situações em que os bens digitais são utilizados apenas temporariamente pelos contratantes, tal como ocorre nas operações de contratação de software na nuvem (SaaS) ou de streaming de músicas e vídeos. Nesse ponto, o Convênio viola a LC 116/03, que determina a incidência do ISS nas operações de “licenciamento ou cessão de direito de uso de programas de computação” (item 1.05) e na “disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdos de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdos pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS)”.
Conclusão
Sem prejuízo de outras patologias não detectadas nessas breves considerações, os Convênios 181/2015 e 106/2017 instituem indevidamente novas materialidades de ICMS e violam uma série de dispositivos constitucionais e legais, razão pela qual sua invalidade é evidente, independentemente da possibilidade em si de o ICMS incidir sobre operações com bens digitais.
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1. O tema deste artigo será objeto de texto mais amplo e aprofundado, que será publicado em obra de cunho acadêmico breve.
2. “O ICMS no comércio eletrônico e a inconstitucionalidade do Protocolo ICMS 21/2011”. In Revista Dialética de Direito Tributário 193. São Paulo: Dialética, 2011, pp. 96-99; “Consequências não tão evidentes da declaração de inconstitucionalidade do Protocolo ICMS 21/2011”. In Revista Eletrônica de Direito Tributário da ABDF, Vol. 5, nº 39, 2015. In http://www.abdf.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=2081.
3. Cf. DERZI, Misabel Abreu Machado. In BALEEIRO, Aliomar. Limitações constitucionais ao poder de tributar. 7ª ed., 7ª tir. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 99.
4. AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. (…) AÇÃO PARA O QUESTIONAMENTO DA CONSTITUCIONALIDADE DE CONVÊNIO FIRMADO PELOS ESTADOS MEMBROS. INCIDÊNCIA DO ICMS NA OPERAÇÃO DE COMBUSTÍVEIS. PARÁGRAFOS 10 E 11 DA CLÁUSULA VIGÉSIMA DO CONVÊNIO ICMS 110/2007, COM REDAÇÃO DADA PELO CONVÊNIO 101/2008 E, MEDIANTE ADITAMENTO, TAMBÉM COM A REDAÇÃO DADA PELO CONVÊNIO 136/2008. ESTORNO, NA FORMA DE RECOLHIMENTO, DO VALOR CORRESPONDENTE AO ICMS DIFERIDO. NATUREZA MERAMENTE CONTÁBIL DO CRÉDITO DO ICMS. O DIFERIMENTO DO LANÇAMENTO DO ICMS NÃO GERA DIREITO A CRÉDITO. ESTABELECIMENTO DE NOVA OBRIGAÇÃO TRIBUTÁRIA POR MEIO DE CONVÊNIO. VIOLAÇÃO DO DISPOSTO NOS ARTS. 145, § 1º; 150, INCISO I; E 155, § 2º, INCISO I E § 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. AÇÃO DIRETA JULGADA PROCEDENTE.
(…)
II – Cabe a ação direta de inconstitucionalidade para questionar convênios, em matéria tributária, firmado pelos Estados membros, por constituírem atos normativos de caráter estrutural, requeridos pelo próprio texto Constitucional (art. 155, § 5º). Precedente da Corte.
(…)
VI – As matérias passíveis de tratamento via convênio são aquelas especificadas no § 4º do art. 155 da Constituição Federal. Portanto, não poderia o Convênio, a título de estorno, determinar novo recolhimento, inovando na ordem jurídica, transmudando a medida escritural – anulação de um crédito – em obrigação de pagar. (…) (Pleno, rel. p/ acórdão Min. RICARDO LEWANDOWSKI, j. em 20/05/2015, DJ de 20/08/2015).
5. Trata-se de decisão que declarou a inconstitucionalidade do Protocolo ICMS 21/2011, que instituiu uma cobrança de ICMS nos Estados de destino, nas vendas não presenciais a não contribuintes do imposto, antes da publicação da EC 87/2015.
6. Essa ADIn trata da possibilidade de incidência de ICMS no download de software padronizados e aguarda julgamento desde 1999.
FONTE: PORTAL JOTA